Quando os mongóis sitiaram Kaffa, em 1346, e colocaram seus mortos nas catapultas e os jogaram contra as muralhas da cidade, não pensaram que este era só o primeiro capítulo de uma história que iria mudar o mundo. A doença que os consumia – e que não conheciam – usaram como arma biológica.
Os fugitivos de Kaffa foram para a Europa e levaram as pulgas. As pulgas se hospedaram nos ratos. E os ratos disseminaram as pulgas pelo continente. A Peste Negra se instalou e matou milhões de “inocentes” (para a biologia e para a História, não existem inocentes), que nem sabiam da existência de Kaffa, dos mongóis, guerras comerciais, rota da seda. Enfim, as pessoas pagam por não saberem das coisas.
É verdade que não é possível prever todas as consequências do ruflar de asas de um só passarinho. Mas também é verdade que podemos antever muitas das tragédias que decisões mal tomadas impõem à vida de todos.
A História e o passado são mestres incomparáveis. A vida, um livro sábio suplicando para ser lido. Ler a vida, a poesia que há nela, o romance que há nela, a História que há nela, as tragédias que há nela, ensina muito. Há sempre um futuro escondido nas linhas quase apagadas nos rastros do passado. É fundamental que sejamos, cada um, um historiador de si mesmo e de seu tempo; um decifrador dos enigmas que o presente emite todos os dias.
Cada época arma as suas arapucas. Seus bárbaros jogam cadáveres infectos contra nossas muralhas; as muralhas de nossas cidades civilizadas. O cadáver de Hitler renasce aqui e ali seguidamente. Suas pulgas e seus ratos disseminam sua doença. Em breve, uma Gestapo do terceiro milênio bate à nossa porta para questionar nossa opinião, nossa tolerância com as diferenças, nossa poesia, nossa forma democrática de ver o mundo.
Prestemos atenção à História. Ela é rica em demonstrações dos teoremas do que é ser humano e do que é ser bárbaro. A História tem Power Point’s, gráficos, abc’s, passo-a-passos, tutoriais, tudo que precisamos para não nos encarcerarmos nas masmorras da barbárie. A História não nos deixa levar por discursos fáceis, por soluções fáceis. Elas não existem. As soluções são complexas e exigem sacrifícios. Fora disso, é a morte gratuita de quem dá poder a malucos que querem dividir a sociedade em castas beligerantes.
O navio da democracia é um barco avariado. Ainda assim, singra, trazendo a reboque a tolerância, o respeito às diferenças, a crença na Justiça e no trabalho como forma de construir o sustento. Mas se o timoneiro for um aventureiro que quer jogar o navio contra as pedras; se a seu comando seus mercenários jogarem cadáveres infectos contra as muralhas da civilização, a democracia se transforma numa nau de insensatos.
Os europeus medievais conviviam tranquilamente com seus ratos até Kaffa exportar suas pulgas. E tudo que antes era pacífico virou morte, desconsolo e tragédia. Todo extermínio passa por nossa aceitação, por nossos desconhecimentos e por nossos fanatismos. É assim que as doenças se alastram. É preciso repetir: tudo, em sociedade, nos diz respeito; tudo, numa cidade e num país, é da nossa conta.
Inclusive os primeiros cadáveres, que a gente mal percebe do que morreram, mas sobre os quais choraremos depois, logo depois de enterrarmos com eles o melhor de todos nós. Quando então pode ser tarde.
Os primeiros cadáveres
