Idolatria, tietagem e fascínio

Vivemos tempos polarizados. Polarização sempre houve. Mas quando messiânica e irracional, baseada em mitos, a sociedade se divide e se destrói. A idolatria precede este mal e está na raiz dele.
Sempre adoramos alguém. Adoramos mãe e pai. Depois os Beatles, na falta deles, o Nelson Gonçalves, na falta dele, Chitãozinho e Xororó, na falta deles Neimar, Fábio Júnior, um político maluco. E assim viemos diminuindo a qualidade porque a alguém temos que adorar.
Endeusamos quem amamos, quem admiramos, quem nos faz feliz e nos dá prazer, quem queríamos ser, quem achamos que vai resolver nossa vida. Não percebemos que os problemas só serão resolvidos pela sociedade organizada, pacífica e democrática.
Quando nos falta autoestima, quando nos consideramos incapazes de gerir a vida e suas impertinências (como a morte) delegamos poder; delegamos alegria, ideia de mundo, vida sexual, dinheiro. Olhe para o lado: se você não está vendo alguém assim, mire-se no espelho.
Quando a gente descobre que não é nada, que se é só um esbirro, uma sombra, lambemos até as botas dos mortos. Às vezes, sentimos inveja de quem se admira, queríamos como nossa a vida dele, daí piora.Se a mediocridade é mais poderosa que a capacidade de ser alguém único no mundo, começam as loucuras.
Otto III, imperador Romano-Germânico, tinha tanta admiração por Carlos Magno (e quase nenhuma por si mesmo) que, depois de um jejum de três dias, mandou abrir o túmulo do imperador morto há 200 anos. Queria descobrir o quanto Carlos Magno lhe era superior. Isto estava na História e ele sabia. Ele queria algo mais. Uma mística. Uma revelação divina. Mas a verdade é que permaneceu um imperador com um destino comum. Não teve ousadia para ser mais que um idólatra. Entrar para a História requeria qualidades que ele não tinha e que sobravam a Carlos Magno. Otto III não sabia como ser o cara.
Otto III encontra o cadáver embalsamado de Carlos Magno, sentado no seu trono de rei. Oto III ajoelha-se e reza. Depoiscorta as unhas crescidas do cadáver. Tira-lhe um dente para dar sorte. Não deu. Otto III morreu de varíola dois anos depois, aos 22 anos. Não percebeu que idolatria e fascínio exagerado não dão sobrevida. Dão subvida.
Estamos vivendo tempos polarizados, de idolatrias extremadas e baixa racionalidade. O mundo, com tanta gente, tantos valores, tantas possiblidades, está cada vez mais complexo. Quem não compreender esta complexidade viverá à sombra de quem a compreende e a manipula. Nas palavras dos marqueteiros, quem não pautar o mundo será pautado por ele. E pautar o mundo é participar da sociedade organizada, e não ser somente um eleitor que delega poderes.
Há novos poderes se formando. A internet, por exemplo. Resta saber se vamos participar dela como protagonistas ou como coadjuvantes. Se vamos como gado seguir os modismos dos falsos messias ou vamos abraçar as melhores causas humanas, sem aventuras fascistas. Se continuarmos fascinados por soluções fáceis, acabaremos nas redes dos pastores do diabo.
Ao passado, cabe inspirar. Não venerar. Otto III buscou num morto aquilo que não era capaz. A História é um ensinamento, uma ponderação. Os agentes que fazem a História, a cada época, são outros. Temos que ser capazes de criar fatos modernos. Fora disso, serão as trevas idólatras da Idade Média.

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