Em meados dos anos 80, quando eu e minha irmã gêmea passamos a estudar no AJ Renner, quase ao mesmo tempo, fomos apresentados à Biblioteca Pública. Professores de História, Geografia, Literatura, Ciências e outras disciplinas passavam trabalhos em grupo. Normalmente, uma boa nota exigia pesquisas em livros e revistas e o acervo da própria escola era insuficiente para atender a todos. A solução: ir até o imponente prédio situado na Rua Capitão Cruz, cujas prateleiras pareciam concentrar todo o conhecimento necessário a uma vida inteira.
O espaço era disputado, já que os alunos de todas as escolas de Montenegro e de cidades vizinhas tinham ali uma espécie de “oráculo” para as mais variadas perguntas. No segundo andar do prédio, dezenas de mesas e cadeiras estavam sempre ocupadas por crianças e jovens barulhentos a quem, às vezes, mais interessava a folia com a turma do que a pesquisa propriamente dita. Como em todo trabalho em grupo, alguns faziam, outros apresentavam e os mais “encostados” apenas assinavam.
Para quem morava no interior, como eu, estas atividades extraclasse significavam permanecer o dia inteiro na “cidade”. Depois da aula, no turno da manhã, a gente almoçava na escola ou em alguma lancheria e ia para a “Biblio”. Lá dentro, um pelotão de dedicados funcionários tentava encontrar os livros, revistas e enciclopédias necessários. Ai que saudades da Barsa! Lembro como carinho da Silvana Schons, da Denise Zimmermann, da Sondi Lutz, da Ada Schwartz e da Ana Haas Reck, mas havia muitos outros. Não sei como aguentavam a balbúrdia. Na saída, antes de descer as escadas, era hábito – pelo menos para mim – ir até o balcão e retirar algum livro para levar junto. Devo ter pego ali quase todos os clássicos de Erico Veríssimo e Jorge Amado, um a cada duas semanas.
Essa rotina durou uns cinco anos, até que, em 1990, comecei a trabalhar e a estudar à noite, onde a exigência dos professores em relação às pesquisas era bem menor. Também já não sobrava tempo para investir naquele ambiente de que tanto gostava. Depois, como repórter, adorava fazer pautas por lá, entrevistando alunos, funcionários e a diretora Lyllian. Lembro que, certa vez, ela me deu uma lista de obras que haviam sido emprestadas e não tinham retornado. Publicamos os títulos na esperança de que os irresponsáveis, ao lerem o apelo, fizessem a devolução. Não é justo que um exemplar seja lido por apenas uma ou duas pessoas.
São doces lembranças de uma realidade a que os mais jovens não tiveram acesso. Primeiro, porque a tecnologia colocou todo aquele conhecimento de papel dentro de uma caixa chamada computador. E as simpáticas bibliotecárias foram substituídas pelo Google e suas ferramentas robóticas de busca. Em segundo lugar porque, há quase oito anos, a Biblioteca Pública não está ao alcance dos leitores, enfurnada num espaço improvisado no Parque Centenário porque a reforma de seu antigo endereço, embora concluída, ainda não tem o aval dos Bombeiros.
Há poucos dias, para assombro geral, o acesso ao prédio foi vandalizado. Sempre duvidei da inteligência e do caráter de quem destrói o patrimônio público. Se os autores do atentado tivessem lido mais, não agiriam dessa forma. É a “burrice” que abre as portas à violência. Espero honestamente que ainda sejam identificados e punidos de alguma forma.
Um dia – tomara que não demore ainda mais – a Biblioteca Pública voltará ao seu antigo endereço e, infelizmente, por algum tempo, seu público será pequeno porque muitos sequer lembram dela depois de tantos anos no exílio. E aí não faltarão idiotas arrotando nas redes sociais que a restauração foi um desperdício. Não pretendo assumir o papel de profeta, mas estejamos preparados, nós que amamos os livros, para defender sua história e torná-la novamente indispensável. Se o conhecimento liberta, não há melhor lugar para romper os grilhões da ignorância.