Razões desconhecidas

“O amor tem razões que a própria razão desconhece.” Esta célebre frase é atribuída a Blaise Pascal (1623-1662), lendário físico, matemático, filósofo e teólogo francês. Costuma ser empregada para justificar comportamentos que fogem à lógica na área afetiva. Como todos sabemos, amor e ódio, repulsa e devoção e tristeza e êxtase podem conviver numa mesma relação, revezando-se ao sabor dos gestos mais simples e corriqueiros. Entre os apaixonados, basta uma palavra para ser elevado ao céu ou arremessado ao abismo das emoções.
Mais de 350 anos se passaram desde que a expressão foi cunhada, mas o noticiário nos prova sua atualidade todos os dias. Que outra explicação haveria – que não o próprio amor e suas incompreensíveis razões – para justificar o comportamento de uma jovem que, depois de ser alvejada por cinco tiros, beija e perdoa o autor dos disparos em frente ao júri que definiria sua sentença? Aconteceu em Venâncio Aires, na tarde desta terça-feira, e a foto correu o país através dos jornais e das redes sociais.
Conversei sobre o assunto com o colega jornalista Álvaro Pegoraro, do jornal Folha do Mate, autor do registro. Ele conta que o crime que deu origem ao julgamento ocorreu no dia 11 de agosto do ano passado, no centro de Venâncio. Lisandro Rafael Posselt, 28 anos, tentou matar a tiros a namorada, Micheli Schlosser, 25 anos. A jovem foi atingida por cinco disparos, mas sobreviveu. O réu estava recolhido preventivamente na Penitenciária Estadual de Venâncio Aires (Peva).
O atentado aconteceu depois de um desentendimento entre o casal. O autor usou um revólver calibre 22, puxou o gatilho sete vezes e cinco balas ficaram alojadas no corpo de Micheli: duas na parte de trás da cabeça, uma nas costas e duas no braço esquerdo. Nunca foram removidas porque não causam incômodo. Durante o julgamento, para assombro geral, a vítima beijou o agressor e disse que o perdoava porque, no dia do crime, ela é que o teria levado a agir daquele modo. “Todos ficamos surpresos”, diz Pegoraro. Posselt foi condenado a sete anos de prisão, mas poderá recorrer em liberdade.
É relativamente comum, no ambiente policial, encontrar mulheres agredidas que denunciam seus companheiros e depois querem “voltar atrás”. Ou porque têm medo, ou não têm para onde ir e nem como se manter longe deles ou simplesmente porque os “amam”, apesar dos hematomas. Segundo psicólogos e outros especialistas comportamentais, porém, é a falta de amor por si mesmas que leva muitas delas a agirem desta forma. E cada vez que isso acontece, todo o esforço para acabar com a violência dá um passo para trás.
Nesse contexto, a jovem de Venâncio Aires causou um enorme prejuízo à causa, sabotando as esperanças de milhares de outras mulheres que vivem sob o tacão de seus maridos, namorados ou companheiros. Ao “perdoar” seu agressor e dizer que ela provocou o atentado que sofreu, Micheli fortalece a ideia machista e atrasada de que os homens têm o direito de usar a violência para “punir” os comportamentos indesejados de suas parceiras. Um absurdo!
Ainda que o amor seja um combustível poderoso, para o bem e para o mal, como sugere Pascal, no enfrentamento à violência contra as mulheres, é preciso dar espaço à razão. Que as leis sejam cumpridas em toda a sua extensão e que as vítimas de relacionamentos abusivos possam receber a ajuda necessária para compreender que o primeiro e mais importante amor é aquele que devemos sentir por nós mesmos.

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