No fundo do poço

A menina se ajoelha no confessionário e começa:
– Padre, perdoe-me porque eu pequei.
– Nenhum pecado é grande demais para Deus – responde o sacerdote.
– É que eu me tornei prostituta – continua ela, com voz trêmula.
– COMO É QUE É? – grita o padre.
– Eu virei prostituta e estou envergonhada – repete a menina, aos prantos.
– Ah bom… Achei que tivesse dito “protestante” – comemora o religioso, após um longo suspiro de alívio.

Ouvi esta anedota há muitos anos, assim como diversas outras que colocam padres e pastores em situações vexatórias, normalmente com alusões debochadas ao voto de castidade e à cobrança do dízimo. O fato é que as diferenças entre católicos e protestantes só se tornaram amistosas mesmo nos últimos 50 anos. Especialmente nas regiões de colonização alemã, as duas correntes mantiveram-se por séculos como água e óleo, sem chance de mistura.

Numa simples conversa com os mais velhos, facilmente brotam histórias de preconceito e dor alimentadas pela guerra nada santa entre discípulos da Santa Sé e os reformistas inspirados por Lutero. Um desses casos, particularmente, deixou-me perplexo. É verdadeiro, mas não vou citar nomes, na esperança de não despertar antigos sofrimentos.

No começo dos anos 50, uma filha de agricultores do interior conheceu um rapaz durante um baile. A troca de olhares ganhou cor na pista de danças. A sintonia entre os dois foi imediata e, no ritmo das músicas de bandinha, os corações bateram forte. Ocorre que ela era evangélica e ele, católico, daqueles que costumavam ajudar a carregar o andor dos santos nas procissões. Para os enamorados, isso não tinha a menor importância, mas os pais da moça pensavam diferente. Não queriam um “Katholisch” na família.

Naquele tempo, depois de dois ou três bailes juntos, a coisa ficava séria. Estava decidido: ele a visitaria no fim de semana seguinte e a pediria em namoro, como mandava o “figurino”. Contudo, na quinta-feira, quando o pai ficou sabendo que ele não era “evangelisch”, a morte da relação foi decretada. Só que não existia um telefone para avisar o pretendente e pedir que ele não fosse até lá. Sábado, fim de tarde, de longe, a jovem o viu chegando, a cavalo. Ainda tinha a esperança de que, se conversassem, o pai veria que se tratava de “boa gente” e permitiria a relação.

Que nada! O velho nem deixou que o aspirante a genro entrasse. Disse apenas que não haveria mais namoro e que fosse embora, a menos que quisesse tomar uma surra de relho. Sem alternativa, ele tomou o caminho de volta. Na mesma noite, enquanto todos dormiam, a menina se jogou no poço. O corpo foi achado na manhã seguinte, quando a mãe pegava água para fazer o café.

Histórias de uniões vetadas por diferenças religiosas eram relativamente comuns na zona de colonização alemã. Além de tragédias e casamentos infelizes, as rusgas entre “katholisch” e “evangelisch” produziram incontáveis solteirões e solteironas, homens e mulheres que não conseguiram absorver a desilusão e nunca mais se interessaram por outra pessoa. De ambos os lados, as famílias faziam de tudo para evitar as “misturas”. A tal ponto de, em algumas localidades, as só venderem terras para praticantes da fé preponderante. Por isso, em muitas comunidades, existe apenas uma igreja.

Felizmente, situações deste tipo não cabem mais em nossa realidade e até rendem piadas. Contudo, servem como um alerta poderoso sobre os riscos de se colocar contra a chance de felicidade dos outros. Não importa o motivo, o radicalismo exacerbado não produz nada de bom. Ao contrário, mesmo que o combustível seja a fé, o resultado costuma ser trágico.

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