Assim que abriu os olhos, teve que piscar algumas vezes até o rádio-relógio ficar nítido. Desde segunda-feira, anseia por essa manhã. O despertar de domingo é a cereja do bolo chamado Fim de Semana; mas isso o lembra de sair com a família, que por sua vez faz pensar no almoço logo mais, na casa da sogra; que por fim o lembra que seu carro está imundo. Ainda fitando as horas, nosso personagem relembra o que viu na garagem: o carro coberto por uma fina camada de pó, onde também se via pegadas com areia, mostrando que os gatos dançaram tango no capô e teto do veículo; além de marcas de patas que escorregaram pelo pára-brisa. Para evitar que esse desleixo vire argumento contra a escolha da filha, uma lavagem é necessária.
Ainda debaixo das cobertas, ele planeja os passos e lista os utensílios necessários. Tirar a condução da garagem, pegar balde, pano, sabão, montar o lava-jato; mas Lava-jato lembra corrupção, que evoca dinheiro público desviado, que lembra alta carga tributária, que explica o porquê de ter um carro popular com dez anos de uso; ao invés de um importado, seminovo, igual ao do Oliveira, seu chefe. Aquele babaca. Tomara que dê ré em cima duma árvore. Nada trágico. Apenas para amassar a traseira, e vê-lo pegar empréstimo no banco só pra comprar a lanterna quebrada. Ou vender um rim; o que doer menos.
Calculando quanto tempo levaria pra sair da cama, tomar um café e começar os trabalhos, nosso amigo decide que não adianta apenas lavar. Tem que limpar o interior. Os tapetes sujos fazem pensar em sujeira debaixo do tapete, que lembra tapeação, que lembra que o interior do carro está pela hora da morte. No porta-malas, um guarda chuva – guardado molhado há quinze dias – divide espaço com um saco de ração canina, que ficou pra ser tirado amanhã, mas esse amanhã não chegou até hoje. Deve tá cheirando a cachorro molhado. Sob os bancos traseiros, um pacote aberto de bolachinhas, com três sobreviventes já moles, indica a origem dos farelos que encobrem o estofamento. No painel, a poeira acumulada implora por um pano, mesmo que parte dela fique estocada nos cantos e frisos.
Cada vez mais, ele se dá conta do tamanho da tarefa; mesmo assim, não sente clima para isso. Ao pensar em clima, lembrou no inverno atual, que o fez pensar na chuva, que o lembrou do barro, respingos e poças d’água. Não adiantaria lavar o carro pra depois sujar novamente andando na chuva. A poça o fez pensar na escassez de água doce, que lembrou proteção ambiental, que lembrou mudanças climáticas, e, num lampejo de consciência ecológica, puxou o edredom até acima das orelhas. Voltou a dormir num suspiro profundo e tranquilo, próprio daqueles que abrem mão do individual em favor do coletivo. Desistiu de lavar o carro. Pelo bem do planeta.