A madrugada já corria alta quando a velha entrou na casa funerária onde meu avô era velado. Fora ela, apenas eu estava lá. Era costume da cidade manter os velórios abertos durante a madrugada e eu havia me prontificado a ficar ali para que meu pai pudesse ir para casa descansar até a hora do enterro. A mulher me cumprimentou com um aceno de cabeça e parou ao lado do caixão. Por um bom tempo, ficou ali parada até que me fintou com os olhos marejados.
– Foi numa noite como essa, também num velório que nossa história começou.
Tive um sobressalto. Ao que parecia, meu avô, que era tido como um santo pela minha avó e considerado um homem exemplar por toda a comunidade, tinha uma amante.
– Não é o que você deve estar pensando. – disse a mulher depois de algum tempo. – Seu Joaquim é um ótimo homem e já salvou essa cidade da perdição.
– Isso foi quando meu avô foi prefeito? – indaguei.
Ela confirmou com a cabeça e se sentou ao meu lado. Respirou fundo e passou a contar a história mais fantástica da vida do meu avô e daquela cidade que lhe adorava.
– Eu tinha 23 anos e trabalhava na casa de tolerância de Guadalupe. A colombiana era querida por todos e morreu de repente. Numa madrugada como essa foi seu velório e enterro.
– Ela foi enterrada durante a madrugada?
– Sim. O padre primeiro se recusou a enterrá-la, mas alguns empresários lhe ofereceram um bom valor para a época ele aceitou fazer o enterro na madruga. – disse e, fungando, fechou os olhos. Quando eu achei que ela havia dormido um leve sorriso apareceu em seu rosto: – O enterro de madame Guadalupe foi acompanhado por alguns bêbados e nós, as prostitutas.
– Mas e os empresários? – questionei.
– Não queriam ser relacionados com a dona do bordel da cidade, apesar de serem assíduos frequentadores de sua casa. Assim, éramos apenas nós e os bêbados. Incluo no grupo dos bêbados os coveiros e o padre. – disse mordazmente.
– Mas o que meu avô tem a ver com isso? – perguntei confuso.
– Calma, ele logo aparecerá. Porém antes é preciso que você entenda a importância da casa de tolerância de Guadalupe. – ela suspirou: – Aquele era o melhor bordel de toda a região. Até mesmo gente da Capital vinha aproveitar noitadas por lá. Guadalupe revezava meninas para deixá-lo aberto todos os dias da semana e comandava o bordel com mão de ferro. Nunca vi uma confusão lá dentro. E, de repente, ela estava morta.
Algumas lágrimas mancharam a maquiagem que a mulher usava e ela ficou em silêncio. Me levantei e peguei um copo d’água para ela.
– Muito obrigado…desculpe-me. Não sei seu nome. – disse ela.
– Sou Fabiano, neto de Joaquim. E você?
– Me chamo Rossana, sou mais uma admiradora de seu avô.
– Por favor, continue com a história. – pedi.
– Pois bem…onde parei? Ah, Guadalupe morreu e com ela morreu o coração da cidade: seu bordel. Primeiro foram os amistosos dos times amadores da cidade com clubes de fora que foram sendo cancelados. Eles sempre terminavam em uma grande festa na casa de Guadalupe. – ela sorriu com a lembrança e continuou: – Depois foram os bêbados. Sem ter onde ficar enchendo a cara até tarde, passaram a beber em locais públicos. Virou algo comum encontrá-los atirados pelos bancos da praça a cada manhã. Isso não acontecia quando havia o bordel de Guadalupe. A colombiana era danada! Ela colocava os bêbados em táxis e os mandava para casa. O preço da corrida era cobrado na próxima vez que o bebum aparecia. Nenhum se recusava a pagar a corrida.
– Imagino o quão escandaloso deveria ser, para uma cidade pequena como esta, amanhecer com bêbados na praça. – comentei.
– Isso não foi nada. Logo as lojas de roupas passaram a faturar menos, já que muitas das gurias de Guadalupe saíram da cidade e pararam de abastecer o comércio local. Algumas até fecharam. Diversas casas também ficaram desocupadas. As moças que resolveram ficar pela cidade, como eu, não conseguiam emprego. – contou Rossana.
– Então o fechamento do bordel afetou até mesmo a economia da cidade! – disse incrédulo.
– E também o nível de violência. – disse a velha depois de um tempo.
– De que forma? – perguntei surpreso.
– Sem emprego e precisando pagar as contas, algumas meninas passaram a se prostituir pelas ruas da cidade. Os principais pontos eram as proximidades do antigo bordel e o cemitério. Saudosa, eu procurava por clientes perto do meu antigo local de trabalho. Por ser longe do centro e perto do rio, a estrada era pouco movimentada. – ela parou e pareceu pensar se deveria continuar a contar sua história. Enfim, decidiu-se: – Foi a pior noite da minha vida. Ainda hoje sinto o cheiro dos dois que me estupraram ao lado da estrada. A dor e a humilhação nunca passarão.
Eu fiquei sem reação. Não queria acreditar que numa cidade como aquela, há mais de 40 anos, crimes violentos tivessem ocorrido.
– Porém, a violência que sofri desencadeou o movimento que reviveu a cidade. Ao saberem do que aconteceu comigo, políticos e empresários foram até seu avô contar minha triste história. Primeiro, Joaquim pediu que eu fosse até ele para me pedir desculpas pela falta de segurança na cidade e prometeu dar um jeito em toda a situação.
– E qual foi a solução encontrada pelo meu avô? – perguntei intrigado.
– A situação da cidade após o fechamento do bordel não era nada fácil, com uma crise financeira e social se instalando. Assim, seu Joaquim fez o que ninguém mais faria: propôs que a casa de tolerância fosse comprada e administrada pela municipalidade.
– O quê?! – exclamei incrédulo. O grito saiu tão alto que achei que acordaria meu avô do seu sono eterno.
– Foi uma grande briga política, mas no final seu avô conseguiu convencer a todos que adquirir e administrar o bordel seria lucrativo para a Prefeitura e benéfico para a cidade. Com o tempo isso se mostrou verdadeiro.
– Mas como isso foi possível? Não havia leis que impediam isso?
– Ah, os loucos anos 70. No começo o governador da época tentou fechar o bordel após descobrir o que ocorreu aqui, mas a pressão popular foi tanta que ele desistiu. O Judiciário também entrou com processos, mas eles foram sendo empurrados até a década seguinte, quando foi criada a associação que passou a administrar a casa.
– Associação?
– Associação Santa Guadalupe. Ela foi arquitetada pelo seu avô e era formada pelas prostitutas. Com um empréstimo compramos o bordel da Prefeitura e passamos a administrá-lo.
– Que história incrível! Não posso acreditar que seja verdade. – eu disse depois de um tempo.
Rossana sorriu.
– Eu também não acreditaria. Mas é a mais pura verdade. – garantiu ela e começou a mexer em sua bolsa.
Primeiro ela me mostrou uma carteirinha de membro da Associação Santa Guadalupe e depois uma foto na qual meu avô aparecia rodeado de mulheres em trajes curtos. Eles posavam na frente de um casarão de dois andares com um letreiro na fachada onde se lia “Santa Guadalupe”.
– Inacreditável. – balbuciei.
– Inacreditável foi a visão e coragem do seu avô para reconhecer a importância do bordel para a cidade. Quem diria que um puteiro poderia salvar uma cidade do desastre?