Querido diário: não sei qual é a minha primeira lembrança da vida porque elas se misturam. Lembro-me de estar frio e de repente tudo ficar quente. Lembro-me do cheiro da minha mãe, do carinho com que ela cuidava de mim e dos meus irmãos.
Chorei muito quando separaram a gente; à noite era quando eu mais sentia falta deles, de deitar, brincar ou simplesmente estar junto. Mas uma nova família me adotou e não demorei muito para me apegar com todo o meu coração.
Eles me elogiavam muito no início, diziam que eu aprendia rápido, mas ficavam bravos comigo quando eu sujava a casa. Eu não sabia ainda quais eram os lugares de cada coisa, mas aprendi.
Às vezes, minha mãe lia histórias para os meus irmãos e eu ficava junto porque adorava deitar com eles no sofá e ouvir a voz dela. Muitas vezes, peguei no sono com eles, tranquilo e feliz. São lembranças maravilhosas e me agarro a elas.
Quando minha mãe me deixava sozinho, admito, ficava muito chateado e fazia bagunça. Queria que ela me notasse e não fosse mais embora de casa; meu pai me xingava e não entendia porque eu fazia o que fazia. Eu também não entendia, só queria que eles estivessem comigo todo o tempo porque os amo muito.
Há um tempo atrás, comecei a me sentir esquisito, cansado e sem vontade de brincar, correr, comer. Minha família ficou preocupada porque falaram que eu estava doente, mas ouvi meu pai dizer que eu estava me tornando um prejuízo. O que é prejuízo não sei, mas não soava bom, o que me deixou ainda mais triste.
Agora é verão e tem muitas moscas em todos os lugares, fico irritado com isso, e quando reclamo delas minha mãe reclama de mim. Peço desculpas sempre, mas não sei se ela me escuta. Está bem calor e toda minha família tem falado que vamos viajar para a praia, o que me deixa muito feliz, porque acho que meu pai não está mais bravo comigo. Dou muitos beijos nele todos os dias, mesmo que ele não goste.
Saímos hoje de manhã com muitas malas no carro. Eu estava contente demais e acho que isso os irritou, porque quando fico feliz faço muita festa. Ainda estou tentando entender porque meu pai estacionou o carro e me deixou aqui enquanto minha mãe desviou o olhar. Acho que estão me castigando por eu ser tão avoado e animado, estragar as coisas em casa e sujar as suas roupas. Mas juro que não faço por mal; é meu jeito de demonstrar amor.
Saí correndo muito rápido atrás do carro, mas eles não pararam. Um dos livros que a mamãe lia era sobre um morto que contava sua história enquanto era devorado pelas larvas, o Brás Cubas. Está acontecendo comigo, com a diferença de que não estou morto.
Acho que a minha mãe e o meu pai ainda vão voltar e que isso não passa de um susto. Dói muito, tenho sede e fome, estou sozinho. São muitas luzes e muitos barulhos aqui, não aguento mais correr, por isso vou esperá-los onde estou, entre esses arbustos ao lado da estrada em que me deixaram.
Querido diário, vou fechar os olhos e descansar porque estou muito, muito cansado. Não consigo mais me lamber para espantar a dor. Quando acordar, sei que minha família vai ter vindo me buscar e vou pular muito, vou lambê-los e abraçá-los. Prometo que não vou mais fazer bagunça, ou pelo menos prometo tentar; se fiz, é porque sinto demais todas as coisas, inclusive amor, e não posso pedir desculpas por isso.
Querido diário, não tenho mais forças para latir. Só vou abrir meus olhos quando ouvir a voz da minha mãe. Espero que seja logo.
*De acordo com o Art. 32 da Lei Federal nº 9.605 de 1998, Lei de Crimes Ambientais, o abandono e maus-tratos de animais são crimes. Denuncie. Adote consciente.
Ana Clara Stiehl
Cronista