Na França do século XVI, não havia liberdade política e os conflitos religiosos estavam se degenerando em guerra civil. Insubordinações e levantes levavam ao terror e à desordem. A esperança de ordem e paz só crescia na ideia de um poder centralizador. Um rei que unificasse, que tivesse poder para decidir o certo e o errado, que tivesse poder de vida e morte. Diante do caos, um ditador era a esperança. Jean Bodin, jurista da época, escrevia que a monarquia forte era a resposta para a soberania e a paz da França. Assim se pavimentava o caminho, não para a liberdade, mas para o absolutismo.
Com a mesma idade de Bodin, outro jovem culto, humanista, se perguntava por que as pessoas entregam voluntariamente sua liberdade e se deixam dominar por um tirano cujo único poder é ter aquilo que seus servos lhe deram.
“Por ora gostaria apenas de compreender como é possível que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações tolerem, por vezes, um tirano sozinho, cujo único poder é aquele que lhe conferem; cujo poder de lesá-los depende apenas da vontade que têm de tolerá-lo; que não lhes faria mal algum se não preferissem sofrer a contradizê-lo… Nós, homens, somos tão fracos que frequentemente temos de obedecer à força.”
Assim inicia o livro “Discurso da servidão voluntária” de Étienne de la Boétie, escrito quando ele tinha menos de 20 anos e publicado apenas após sua prematura morte, pelo amigo Montaigne, que com a ponderação e a experiência da idade, busca rejuvenescer La Boétie para conferir menos importância à sua ação. Publicando o livro como “o discurso de um jovem passional”, Montaigne também garantia certa proteção ao seu pescoço.
Para Étienne, só existe uma prisão possível: aquela que você mesmo construiu e cuja porta, por estranho deleite, você fechou. Saiba sempre que toda servidão é voluntária. Sua liberdade é sua e você pode entregá-la a qualquer um que desejar. Os tiranos agradecem.
Os séculos passaram, a França e o resto do mundo construíram o conceito de democracia, mas o fantasma do “poder centralizador” sempre ronda, principalmente nos momentos conturbados que, diga-se de passagem, sempre ocorrerão. Os incautos e simplistas, que buscam equilíbrio e segurança idealizados, sempre estarão dispostos a entregar sua liberdade em troca da sensação de controle.
Nossa própria democracia é mais idealizada do que vivida, quem tem dinheiro torna-se um pequeno rei, rodeado de vassalos que se submetem por conforto e sobrevivência. Como “sempre foi assim”, é assim que funciona.
“ O primeiro motivo por trás da servidão voluntária é o costume.”
O pequeno livro de Boétie foi publicado em 1576 e ainda traz questionamentos atuais. Só isso já mostra o quanto demoramos para avançar como sociedade, só isso já mostra como são falsas as promessas de soluções e revoluções que prometem um mundo, uma cidade, um país ideais, construídos em poucos anos por gênios de palanques.
Viver uma sociedade anárquica, onde um cuida do outro e na qual não cabem governos, é uma utopia, mas dar tanto poder a tão poucos é uma estupidez confortável. Como diz Boétie, para combater o tirano, não é preciso tirar-lhe algo e, sim, dar-lhe nada.