“Quando um exército vai contra outro, é melhor que não se olhem nos olhos.” (Thomas Mann)
Para qualquer guerra dar certo, é preciso, antes, desumanizar o outro. Há sempre uma ameaça no outro: o imperialismo, o comunismo, o fascismo, o paganismo, a dominação, a raça impura…
Somos bons em ver, em humanos iguais a nós, monstros. O monstro nunca está em nós, sempre no outro.
Deve ser bem difícil dar um tiro em outro humano, sempre alvejamos uma ameaça.
“O mundo é construído sobre um muro que separa tipos. Conte para qualquer lado que não há muro e terá uma guerra.” (Blade Runner 2049)
Os outros estão sempre atrapalhando nossos planos, mas não conseguimos viver sozinhos. Precisamos dos outros, odiamos os outros. Melhor para todo mundo, então, que separemos os meus outros dos outros outros, com muros. “O inferno são os outros.” (Sartre)
Por acaso e porque o sol o incomodava muito, o argelino Mersault matou um árabe, na praia. Atirou uma vez e depois mais quatro “ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso.” (O Estrangeiro – Albert Camus). Era só um árabe, uma ameaça a menos.
“Então eu sou o cara mau?” pergunta Michael Douglas, no papel de William Foster, ao final do filme “Um dia de fúria.” Toda vez que estou preso no trânsito, assistindo a pequenas espertezas oportunistas para ganhar um metro de asfalto, olho para o interior das máquinas. Lá estão humanos, monstros, Williams Fosters prontos para explodir em surto. Ainda bem que sou calmo e controlado, mas se estivesse dirigindo um caminhão, uma arranhadinha educativa no outro me faria bem. Eis o monstro querendo entrar, ou sair. Quantas vezes já fiz da buzina meu urro.
“Sempre que me misturo aos homens, fico menos humano.” (Thomas de Kempis)
Na fábula dos porcos-espinhos, é inverno e eles juntam-se para se aquecer. Logo que começam a se espetar, se afastam e começam novamente a sentir frio. Aproximam-se e afastam-se até descobrirem a distância ideal entre os dois males. “Assim é na sociedade, na qual o vazio e a monotonia fazem com que os homens se aproximem, mas seus muitos defeitos, desagradáveis e repelentes, fazem com que se afastem.” (Schopenhauer)
Testar o tamanho dos próprios espinhos, saber que os outros também os têm e estão testando seus tamanhos. Saber que todos sentimos frio e que, em algum momento, buscaremos calor. Não parecem ser tarefas difíceis, mas são extremamente complexas nas suas sutilezas.
“Terminado o jogo, Rei e Peão vão para a mesma caixa.” (Provérbio Italiano)