O mar de cada um

Em 2002, fui mergulhar em Fernando de Noronha. Antes, um curso em Recife. Meu grupo aprendeu sobre navegação à vela e, claro, sobrevivência em caso de naufrágio.
Durante as 36 horas de balanço no catamarã, tive o privilégio de ver noites sem a luz da civilização. O céu não tem estrelas, é pintado delas. O breu líquido do mar aberto só deixava de ser aterrador quando me distraía com as estrelas. Momentos em que busquei paz no céu.
O mar também revelou uma surpresa luminosa. Pude ver de perto a bioluminescência verde das águas, já que, nas primeiras 24 horas, dormi no convés. Era mais prático para quem precisava vomitar a cada 40 minutos.
Ao chegar na ilha, a primeira coisa que fiz foi assistir a uma palestra sobre tubarões. Poderia parecer mau augúrio ou masoquismo. Alguns tipos não se sentem seguros com fé, mas com conhecimento.
Uma estatística piadista do palestrante mostrava que há mais pessoas mordidas por poodles do que por tubarões. Esse conhecimento não me tranquilizou.
Depois fiquei sabendo que tubarões preferem surfistas a mergulhadores, pois visto de baixo, um humano sobre uma prancha lembra uma foca. Predadores oportunistas, preferem algo que conhecem. Digamos que um ser com cilindros nas costas, soltando bolhas e com dois olhos arregalados atrás de um vidro deve ser um alienígena de aparência ossuda. Tubarões não gostam de mastigar.
Porém, se um desses fascinantes caçadores for o curioso da turma e resolver experimentar a iguaria estranha, não há muito o que fazer. O palestrante fez analogia com um caminhão na estrada, dirigido por um psicopata ou sonolento motorista que, de repente, investe contra seu sedan médio. Você até se esquiva, mas não tem muito o que fazer além de contar com o acaso favorável, a popular sorte. Tubarões não têm dedos para apalpar e cutucar o que consideram curioso, usam uma pequena mordida. Dizem que humanos não agradam seus paladares, mas poucos sobrevivem à degustação.
As águas de Fernando de Noronha são incríveis. Quentes, com muita vida, 50 metros de visibilidade. Um paraíso. Não encontrei nenhum tubarão, nem pensei neles. Estava com uma equipe de Dive Masters muito competente, e colegas mergulhadores são uma irmandade.
Um ano antes de me tornar mergulhador, eu tinha pânico de água. Aquele medo me incomodou e eu resolvi (trocadilho irresistível) ir a fundo nesse sentimento.
Chega uma hora que o medo fica tão íntimo que podemos ver seus olhos. Um medo evita duelos com quem o conhece. Os tubarões, os psicopatas, as dúvidas, os apressados e sonolentos motoristas, os poodles… estão por aí, e continuamos saindo de casa todos os dias. Em boa parte das vezes. somos os predadores oportunistas.
Na volta, mais 36 horas de navegação, sem vomitar. Ao chegar, fiquei “mareado de terra firme”, senti, por alguns minutos, a falta do balanço líquido. Aprendi muito com os colegas, mestres, com os mergulhos no mar do mundo e no meu. Ambos os mares têm mistérios e medos profundos. O mar do mundo os guarda para si.

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