Não desperdice uma crise

Este é um ditado bem conhecido no mundo da estratégia política. Numa primeira lida, em meio a uma grave crise que promete fim de vidas e de economias, soa como o mais desprezível exemplo de egoísmo e oportunismo. Não há nada, porém, em seu estado mais infame, que não tenha nascente na nobre necessidade.
O choro, um dia, é percebido pela criança como garantia de atenção dos pais e já não é mais usado apenas na fome e na dor, mas para propósitos menos urgentes e, logo, para propósitos egoístas. O choro dispara uma crise, a crise deve ser resolvida, a vantagem é da criança e de seu cérebro experimentando o nascimento da inteligência. O ônus da crise é dos pais, dominados pelo mais básico instinto de proteção da prole.
Mais tarde, a sedução, os apelos sexuais, a manipulação sentimental, os sofrimentos exagerados e as mentiras inocentes, as falácias são fartamente utilizados para criar e resolver crises. E, claro, obter vantagens. As mais intensas histórias, os mais tocantes filmes, a mais bela literatura, toda arte tem, em seu cerne, a crise.
É motivo de orgulho e exemplo, no mundo business, aquele que vende os lenços enquanto todos choram.
Uma gripe leve pode ser bem conveniente para conseguir aquele atestado e curtir o merecido descanso no meio da semana, curtindo séries da Netflix. Um abalo na economia e rumores de recessão podem ser bem úteis para renegociar aqueles contratos, empurrar dívidas, livrar-se de uns funcionários que tiram atestado quando na verdade não precisam. Não se desperdiça uma crise, afinal, é questão de sobrevivência.
Um acidente na estrada e consequente engarrafamento pode ser a oportunidade para parar num posto, tirar umas horas de ócio ou fazer desvio para um adultério relaxante. Não importam os mortos desconhecidos nas ferragens, vida que segue.
A morte da esposa de político pode, convenientemente, agregar-lhe enorme carga de útil empatia. Uma facada, em campanha, pode significar morte, ou uma sensacional sobrevida política. Quem teria coragem de não se emocionar e não mitificar estes que, heroicamente, doam-se tanto pelo bem de tantos? Quem seria o desprezível que os vê como desprezíveis manipuladores?
Fomentar guerrilhas e crises em território alheio é lucrativo para quem fomenta. Utilizar os destroços e corpos empilhados no quintal é uma denúncia e pedido de ajuda, mas também uma boa peça de propaganda contra o demoníaco provocador.
O jogo funciona assim, mesmo que o jogador não concorde. Há, em toda parte e em todos os níveis, manipulação e aproveitamento de crises. O que nos prejudica é abominável, o que nos beneficia é inteligente uso das circunstâncias.
Houve uma época em que mocinhos duvidosos e vilões sedutores eram refinados, discretos e distantes. O que impressiona hoje é que eles se fundiram, viraram ogros e estão aqui ao lado.
Há uma medida nas coisas, ou, como diria Buddha, um virtuoso caminho do meio. Esta medida e virtude não estão nas leis, nos deuses, na ciência. Estão nos valores conscientes. É bem simples se perguntar: Eu gostaria que isso fosse feito comigo? É imediato responder: Não!
É praticamente impossível este pensamento corresponder à adequada e virtuosa ação.

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