Só entende o valor da história quem as têm para contar e foi modificado por outras. Sem vida cheia de altos e baixos e encruzilhadas, sem se impressionar como viveram e morreram outros, não há como valorizar cada pedra gasta, cada lâmina oxidada de sangue e as rugas entalhadas com a paciência do tempo nos rostos impacientes.
É preciso ter tido o mínimo de vida, no sentido máximo da palavra, para entender o que é passado, o que é legado e o que se faz com tudo isso.
Sem esse sentimento, somos atraídos por historietas previsíveis, roteirizadas pelo que dita a mais nova regra da velha moda de parecer mais do que ser. Criaturas que fogem do risco das adversidades são as primeiras riscadas das páginas. Viver é errar muito, acertar às vezes, tentar sempre e sobreviver para contar. Só assim para ter algo para chamar de futuro e produzir novo passado.
Ali embaixo, em frente a esse prédio, está o cemitério antigo. Daqui posso ver as gavetas dos cadáveres modestos, incrustadas nas paredes grossas. Há jardins e caminhos pavimentados que levam a túmulos suntuosos e às capelas que ostentam memórias das ossadas mais nobres. Há uma em estilo gótico, muito refinada em suas firulas. Tudo coberto pelo mesmo musgo escuro e democrático, inclusive as santas estátuas chorosas, que, se têm histórias, não as contam. Túmulos são tentativas tristes de prender memórias empilhando pedras, assim como são patéticas minhas tentativas, ao empilhar palavras. O que não escapa aos meus olhos pode virar história, desde que eu construa alguma espécie de santuário.
Aquela mirrada senhora, quase sem forças para empurrar sua moto, com um capacete enorme que a torna figura desproporcional, lembra os alienígenas cabeçudos dos filmes improváveis. De dentro daquele elmo plástico descascado, sai uma voz aguda que pragueja algo ininteligível. Qual será sua história? Posso criá-la, não quero sabê-la. A verdade deve ser mais triste do que eu gostaria.
E o homem de mãos grossas e cabelo longo ensebado, na fila do decadente supermercado? O que contam os profundos sulcos em seu rosto? No cesto, um pacote de arroz, três pães, duas cervejas e uma bolinha de guisado de segunda. Isso tudo é tão eloquente, gritam tanto essas histórias nas filas e passos das gentes tristes, iradas, apáticas e mortas.
Já longe dessas cenas, de volta à janela do apartamento, vejo a algazarra de jovens brincando em balanços, a poucos metros do cercado de pedras com pilhas de corpos pobres que guardam, ao centro, os ossos nobres. Os túmulos de um lado, as crianças de outro. Vejo o passado e o futuro, do alto da minha torre. A tristeza e a alegria efêmera. Crianças criando uma história para postar e amanhã ou depois, as enterrar, como tudo que passa por baixo da bênção do tempo.
Sinto-me confortável nessa posição de poderoso observador, ninguém me vê, só eu vejo e penso sobre os vivos inconsequentes e os futuros sepultados.
Leve mudança de foco mostra meu rosto no vidro, mesclado ao horizonte cinza. Meus sulcos e barba por fazer, o que contam? Não me pressione, rosto! Hoje só quero falar de histórias não minhas.