“Eu sou um escritor brasileiro, meu material de trabalho é a língua portuguesa. Se você gasta o adjetivo “genial” com o Chimbinha, o que é que eu vou dizer do Beethoven?”.
Esta frase é de Ariano Suassuna, dita em uma palestra, quando comentou sobre um artigo de jornal no qual o articulista afirmava que Chimbinha, da extinta Banda Calypso, era um guitarrista genial.
A linguagem é nossa companheira por toda a vida. Pela linguagem, nos constituímos, entendemos e revelamos o mundo. Definimos todas as nossas relações e emoções com palavras. Quanto peso significante tem um “eu te amo” ou um “eu te odeio”?
Quantas vezes já dissemos ou escrevemos coisas com um significado e outro bem diferente foi entendido? Podem as palavras que saem de nós comunicarem algo que não somos? Se a linguagem é a principal ferramenta para revelarmos nossa visão de mundo, como ela pode nos trair?
Há uma ideia equivocada de que, se pudéssemos usar os signos da linguagem adequadamente, muitos dos nossos conflitos seriam resolvidos.
Quando Freud lançou a ideia do inconsciente, logo se imaginou que ele seria um baú, um lugar nos nossos porões, que nos domina e do qual não temos muito controle.
Numa grande virada da psicanálise, Jacques Lacan atribuiu que “o lugar do inconsciente é o lugar da linguagem.” O inconsciente, portanto, está sempre no meio de nós, se revelando pelas palavras que escolhemos. O problema é que nem sempre escolhemos as palavras, pois não dominamos a linguagem, ela nos domina.
E como se não bastassem os enganos da linguagem, nossos atos falhos e “piadinhas inocentes” para revelar o que se esconde no nosso inconsciente, somos preguiçosos. Usamos as mesmas palavras para múltiplos significados e as pervertemos, as enfraquecemos.
O processo de diluição dos significados se dá no exemplo do “genial Chimbinha” e está mais presente do que percebemos.
O significado de “incrível” é algo que é difícil de acreditar, inexplicável, fora do comum. E então dizemos “Este xampu é incrível!”, “Nossa, seus sapatos são incríveis!” Parafraseando Suassuna, se eu gasto um “incrível” para sapatos e xampus, o que irei usar quando ver um disco voador?
Pode parecer inocente esta esterilização semântica, mas quando a banalização dos significados vai para palavras como “morte, estupro, bandido, fascista, feminista, pobre, negro, rentista, comunista” e tantas outras da moda dos xingamentos virtuais, começamos a desumanizar o outro através de rótulos que justifiquem sua destruição.
Se condenamos a perversão dos costumes porque não condenar a perversão dos significados, que é onde tudo começa? Se a linguagem vem do nosso íntimo, e no nosso íntimo somos bons e bem intencionados, como pode ela, às vezes, sair tão podre?