Crônica para o xixi

Enquanto eu tomava o primeiro meio litro de café do dia, ela veio decidida. Saiu de seu ninho, agachou-se sobre as folhas de ontem e empapou meu texto e minha cara com seu quente líquido amarelo. Depois veio, rebolando o rabo para o meu lado, satisfeita, como quem diz: “Nada pessoal, mas era uma crítica literária que precisava ser feita.” Cadela!
O sociólogo, literato e professor Antonio Candido de Mello e Souza diz que a crônica é um gênero “ao rés do chão”, pois se hoje entretém o leitor, na semana seguinte servirá para embrulhar sapato ou peixe. Hoje quase não se embrulha mais nada com jornal, mas houve época em que as notícias vencidas embalavam o peixe, a linguiça e auxiliavam na limpeza íntima. E a crônica sempre no meio, sem duplo sentido.

É um bom exercício de humildade para o escritor saber que suas palavras cuidadosamente escolhidas, paridas muitas vezes com as dores e contrações que as ideias causam, em alguns dias, estarão sob o xixi do cachorro.

Tem um ciclo de vida interessante, a crônica. Nasce em um ambiente limpo, cheia de esperanças de glórias, vai ao prelo, reproduz-se aos milhares ainda jovem, amanhece em mesas, é degustada por olhares apressados. Causa alguns sorrisos, tristezas ou reflexões. Acabou a glória. Dali em diante será banheiro de algum adorável quadrúpede. Sempre há a possibilidade de ressurreição no papel mais nobre de um livro, numa discussão filosófica de boteco ou em alguma tela iluminada.

Mesmo assim, na maior parte de sua vida, a crônica estará no escuro, fechada em algum arquivo guardando um breve retrato de seu tempo e aguardando. Nunca se sabe qual faminto virá primeiro, um novo leitor ou uma traça. Já o xixi, este é praticamente uma certeza. Ou isso ou a nobre causa suicida do acendimento do fogo do churrasco.

É irônico que a bela crítica líquida venha de um ser que nem lê, nem se apoquenta com as neuroses e afecções humanas. Ele só quer carinho, comida e jornais secos pela manhã. É nosso companheiro desde as cavernas, desde quando não escrevíamos, sequer tínhamos uma linguagem organizada, mas já havia o entendimento entre as duas espécies. O cão nos conhece muito bem. Ver nosso melhor servindo de suporte para seus dejetos é um tapa na vaidade, um chute no saco do ego e uma lembrança de que por mais glorioso, lindo, sábio e poético que seja, tudo é efêmero. Ou, como diz a sabedoria culinária gaudéria: tudo que é sólido se desmancha no puchero.

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