Alguns temem que, num futuro distópico, as vacinas poderão ter microchips para coletar informações, rastrear e manipular pessoas aos milhões. Hoje sabemos que celulares, redes sociais, câmeras, jogos e o que digitamos nas pesquisas do Google fazem algo do tipo. No futuro, é provável que nossos carros e eletrodomésticos ajudem a completar o mosaico que forma a personalidade e o comportamento de cada humano em uma base de dados.
Sinto informar, mas esta tecnologia teve seu protótipo concebido e implementado com sucesso há uns dois mil anos. Foi gradativamente sendo implantada por um grupo e posteriormente os próprios implantados trataram de disseminá-la de forma exponencial e é utilizada até hoje. É inoculada não no corpo, mas na mente. Chama-se Pecado.
Através da noção de pecado, que pode ser até um pensamento, o registro das atividades e intenções de cada inoculado era reportado periodicamente em um centro de informações. Discreto, um membro da comunidade recebia, de modo confesso e voluntário, as dores, angústias, desejos e atos de cada indivíduo, que se enquadravam na matriz do Pecado. Os ânimos culpados eram acalmados com um bálsamo chamado Perdão, que deveria ser injetado em doses de acordo com a gravidade do Pecado. Em alguns casos mais graves, usava-se um artifício chamado Penitência para injetar doses cavalares de Perdão.
A comunidade não se curava, mas mantinha-se em equilíbrio aceitável. É sabida a facilidade com que o humano se entrega ao normal e no normal tudo cabe, basta que se repita o suficiente. Pecar passou a ser normal tanto quanto as doses semanais de Perdão que eram pagas com servidão e informação. Com o tempo, tornou-se absolutamente normal ter sua liberdade tolhida e sua vida regrada em troca das doses de Perdão que só eram necessárias porque os próprios usuários se permitiram viciar.va com uma legião disposta a entregar a vida aos seus propósitos. Agora já tinham um mix maior de produtos, vendiam Glória, Redenção, Vida Eterna e Paraíso. Para obter estes produtos, pagava-se com uma vida inteira.
Os vendedores aceitavam todas as moedas, de bondade à delação, de paz à guerra, desde que a paga fosse alinhada aos seus mais elevados propósitos. Uns poucos que eram imunes ao Pecado e não viam necessidade nos produtos em oferta eram proscritos, execrados e muitas vezes queimados.
Com o tempo, este modelo foi sendo desgastado, veio a tecnologia com sua sedução lógica. E como o Mercado só é Mercado, não porque é sábio, mas porque é velho, tudo se fundiu num novo, complexo e imenso mix de produtos. Hoje há Pecados Gourmet, Pecados Raiz, Pecados Nutella. Há Glórias de todos os tamanhos e brilhos; há Paraísos, inclusive na Terra. Há Redenção no heroísmo e na estupidez. Há de tudo e tudo pago com as liberdades, com a informação, com manipulação e com a complacência. E tem gente preocupada com um chip inoculado, quando já nem é mais gente, é um bagaço que normaliza o horror.