Chegou o cartão de Natal. Dizia “Que a paz e o entendimento reine entre todos, como no exemplo de Cristo…”
Chegou a notícia. “Casal gay é espancado no Rio de Janeiro.”
Chegou aquela época do ano em que o sonho e a realidade ficam indecorosamente íntimos.
“Imagine all the people, living life in peace…” canta o coral de vozes multicoloridas.
Policial morto, pancadaria entre torcidas, mortes no baile funk, balas perdidas que sempre acham uma carne parda e suja.
Que a paz, o amor, o sucesso e o tempo para curtir as coisas simples da vida estejam presentes durante todos os dias do novo ano.
Cinco mortes trágicas em uma semana, a sirene das ambulâncias é a sinfonia natalina que mais toca aqui no caminho do hospital, seguida dos uivos dos cães, que soam como lamentos. A pressa em ter pressa, um olho no celular e outro na estrada, um susto. O último.
Responder a uma mensagem é mais urgente que a vida, estar presente é uma raridade desse tempo.
Que possamos… Meus desejos para… Que o novo ano traga… Que o espírito…
Terceirizamos responsabilidades ao indeterminado.
Desejar e não fazer pertence ao mesmo mundo mágico do palanque político, onde tudo é viável, desejável e honesto, em evidente contraste com a gestão real.
A mensagem que me pareceu mais honesta: “…um Natal cheio de alegria e amor com as pessoas que você mais ama…” Sim, pois esse negócio de amar todo mundo não deu certo, em dois mil anos de prática os exemplos são nada abundantes.
Amamos e protegemos aquela meia dúzia, sobre o resto, convivemos. Se bem, mal ou neutro, vai depender do quão indecorosamente íntimos ficarão os contrastes. Carecemos daquele material típico de semideuses e iluminados, que quando aparecem, tão plácidos e amorosos, nem os consideramos humanos. No íntimo, sabemos o que somos, só não gostamos de olhar. Nos finais dos anos, passamos esse verniz de mensagens belas sobre os porretes manchados. Uma enganação ou esperança coletiva, precisamos manter fantasias e possíveis aliados. Honestidade cortante não contribui para esses objetivos.
Quando chega a notícia sobre o grupo que promovia rinha de cães e todos os horrores narrados, ficamos furiosos, pensamos em colocá-los em uma arena. Nos espantamos por ainda existirem monstros, e logo nos aliviamos, pois, em comparação com eles, somos anjos. Não nos acostumamos com horrores, mas nos acostumamos a não se acostumar.
Sempre haverá um desprezo, um rancor, uma antipatia, uma hostilidade em cada um. Saber que eles estão ali e como são, sem verniz nem perfume, horrorizar-se com eles e com aquele prazer que causam, é o primeiro passo para mantê-los sob controle.