Algoz

Nesses tempos estranhos, não é de duvidar que volte a profissão de algoz, claro que sob regime de jornada intermitente, o que em parte é bom, em partes é ruim.
Matéria-bruta não faltaria. Eu mesmo, sendo artista, chargista, ateísta, estaria andando no fio da navalha. Com três “ístas” no currículo, já se é elegível para encabeçar a lista negra.
Nos dias de intensa produtividade, o carrasco não pode perder as cabeças. Tem que espancar a meta, pois a briga com os concorrentes é pescoço a pescoço.
Fico imaginando o carrasco chegando em casa depois do expediente:
– Oi, vida! Cheguei!
– Oi, meu anjo! Como foice-u dia? – responde a esposa com a rotineira piada interna.
– De matar! Hoje foi um tormento lá na repartição. Tô quebrado! Foram 860 decapitadas, sem contar as surras e fraturas, trabalho que deveria ser dos amaciadores, não de um finalizador experiente como eu. Estão cortando os custos na carne e acumulei funções. Até colaram um cartaz lá na linha de produção: “Algoz bom é algoz morto. De cansaço.” E os puxa sacos da gerência?! Sempre querendo se enturmar na produção para descobrir quem está matando tempo… É cadafalso que não dá pra aguentar. Não sei se consigo carregar essa cruz por muito tempo.
– Ohhh, querido! É de cortar o coração te ver assim. Senta aqui! Fiz a sopinha de fígado macerado com os cabelinhos de anjo que você  gosta. Vou lavar teu machado. Depois toma um banho escaldante e vê se muda essa cara de enterro.
Enquanto sorve devagar o caldo de fígado, reflete sobre sua rotina massacrante. Sem reconhecer a existência de sua consciência, lhe vem um pensamento que não sabe de onde: “Algoz me diz que, se continuar assim, não duro muito, e essa é uma certeza cortante.”
Já com a cabeça mais fria após o caldo quente, reflete sobre empreendedorismo. Apesar de sua especialidade ser desmontar, bem que poderia montar seu próprio negócio e abandonar aquele ninho de sádicos. Muitos sádicos juntos é um grande problema, logo se revelam o canibalismo psicológico e as interpenetrações de vaidades.
Adormece e sonha com seu paraíso, andando despercebido entre incautos, estúpidos, dóceis e masoquistas. Contratos firmados, encomendas chegando… quebra umas pernas ali, tortura mais uns dois lá, extorque com pancada. Quebra dentes e arranca unhas, o que lhe dá secreto tesão pelos gritos e mistura dos cheiros de suor, sangue e hálito. Lembra dos inquisidores da Idade Média, que justificavam que toda alma pura quer confessar. É o corpo, esse repositório do mal, que a impede, por isso a verdade e a salvação devem ser arrancadas através de tormentos. Por providência, esse mesmo corpo eivado de males sempre foi bem mais acessível do que a alma.
Acorda excitado com o sonho e com a ideia, revela para a esposa a mais importante decisão de sua vida:
– Querida, está decidido. Vou me tornar um miliciano freelancer. E no futuro penso em criar um Uber-milícia.
Os olhos brilham e se arregalam, os sorrisos assustadores se desenham. Ela abre a gaveta do criado morto e pega o chicotinho.

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