Nas ruas, as bocas de lobo, ávidas, eram sumidouros de boas ideias. As portas e janelas, mesmo entreabertas, bebiam a vida alheia em pequenos goles, acrescidas de três gotas de veneno. Aquela cidade tinha fome e sede de tudo que pudesse ser transformador. E havia quem a alimentasse com poesia, com ideias, com arte e solidariedade.
Mas, estranhamente, nada vingava, a cidade emagrecia, acometida de doença grave, sendo sugada por criaturas parasitas alojadas em suas entranhas.
Na pele da cidade, já se viam os sintomas da doença: cancros profundos, chagas abertas, falta de viço.
O rosto, já desfigurado, mal e porcamente lembrava que um dia a cidade teve uma história vibrante e jovial.
Mas ainda havia os que a alimentassem, os que abnegadamente lhe davam elixires, chás e fórmulas produzidas por grupos de alquimistas incansáveis na sua sina de salvar a cidade dos vermes entranhados.
Vermes que estavam por todo lugar. Para eles, a cidade era só o hospedeiro de suas necessidades egoístas, a sugavam, a sujavam, sorviam sua essência. Viam-se seus dejetos nas sarjetas, nas paredes velhas, nos ruídos, nos abandonos, nas atitudes pequenas. Ninguém via os vermes, mas suas evidências estavam por toda parte.
Os sonhadores sonhavam, dedicavam-se, entregavam seu tempo, mas eram poucos, e cansavam. A doença era forte e avançava em metástase, a doença era lucrativa e protetora para seus vermes. E o mais triste de tudo, a doença era antiga. E sabe-se do que é antigo: que tem raízes profundas.
Mas ainda tinham os que ofereciam grandes porções de sonhos em travessas douradas à pobre moribunda. Ela sorria um sorriso débil, agradecido em seu convalescer. E estes que ofereciam seus sonhos alimentavam as próprias esperanças, ainda que por pouco tempo, porque naquela cidade, as esperanças não eram as últimas, mas as primeiras a morrer. Por sorte, teimavam nascer novas.
Era triste, para os poucos que se davam ao trabalho de ver, o olhar da cidade opaco, a memória em lapsos, a identidade em delírio. E este era um dos problemas: os motivados entregavam seus esforços mais por tristeza do que por orgulho, e esmoreciam, e seus esforços caíam nas mãos dos contaminados, motivados por glória e palco.
E mesmo entre os bem intencionados havia contaminação. Os vermes produziam uma doença capaz da sutileza, instalava-se silenciosa e vestia-se das boas intenções, de modo que muitos doentes eram ignorantes da doença e muitos eram paranóicos da doença, então não prosperava união, mas desconfiança, e os vermes riam em deleite, de seu engendrado jogo.
E na cidade, os contaminados seguiam sua práxis, automatizados, presos aos sintomas, alimentando seu algoz. Para viver mais um dia era preciso lamber os dejetos viperinos dos mais fortes. E no fundo de sua agonia, todos na cidade sabiam: para eliminar os vermes, cada um teria que matar um pedaço de si mesmo.