Num desses dias em que você tem um daqueles surtos de organizar prateleiras e armários, encontra uma caixa. Nela estão documentos, fotos e objetos do seu falecido pai. Um quebra-cabeças vai sendo montado na sua mente, relembrando as manias, valores, momentos, sentimentos. Você já tem quase trinta anos e nos cinco minutos diante da caixa aberta reviveu mais de vinte.
O nosso tempo, este aqui e agora, tem uma realidade efetiva, mas quando o usamos para lembrar ou esperar, ele se encolhe ou se estica drasticamente. Diante da caixa de memórias, dentro de um livro, imerso em um filme, recuperando-se de uma doença, com saudade, esperando quem partiu. Quantos tempos diferentes transcorrem dentro da mesmas cartesianas horas.
Diante da caixa, você se dá conta de como seu pai perdeu tempo com preocupações que não mereciam aquela energia, um misto de saudade e arrependimento acontece, por não ter sido mais presente e mais insistente em ajudá-lo a usar melhor o lapso de vida que lhe coube.
Então você pensa que tem sorte por ainda não ter nem trinta anos e ter encontrado essa caixa. Com sua vida será diferente, não se deixará levar por bobagens, não perderá tempo com pessoas rasas e mal intencionadas. Degustará seu tempo a cada gole, por honra ao pai e por consciência. Tampa a caixa e a coloca de volta, exatamente no lugar que ela protegeu da poeira. Este pedaço de tempo aprisionado não pode ser submetido à adulterações profanas.
E vai para a vida! Essa mesma que sabe muito bem como diluir momentos e os tornar insípidos. Você tem que ganhar a vida enquanto a perde. De vez em quando, lembra do pai, quando vê um velho de olhar cansado. E esquece, pois a vida e o tempo efetivos é só à frente que se impõem. Quem vive só de reminiscências acaba sepultado nelas. Você segue! Tem que seguir. Fica contente quando lembra de lembrar que está aproveitando o momento, quando sente o gosto da comida, quando responde de forma não automática a um filho, quando tira os olhos da tela, os dedos do teclado e a mente de qualquer coisa importante para, efetivamente, ter um contato que pode ser chamado de humano. Quantas vezes não se deu conta de estar no piloto automático? E por isso ele é tão eficiente: ao percebê-lo, desliga-se o automático. O automático não quer percepção ou questionamento, ele quer vazão.
Estamos, eu e você, fazendo de novo aquela mágica de alongar o tempo, vivendo anos, quiçá décadas no breve instante dessas letras. Não se preocupe, logo logo voltaremos ao hábito de encolhê-lo.
Agora você já tem quase cinquenta e cinco anos e está diante daquela velha caixa. Há muito pó e medo de abri-la. Sabe-se lá que memórias e sentimentos o tempo ali de dentro está à espreita para tomar de assalto.