Logo que a pandemia teve início no Brasil, talvez porque nossa população estava assustada com o estrago que a Covid-19 fazia, na época, em países como a Itália, nós tivemos uma ilusão de igualdade em meio a uma crise de dimensões inimagináveis. A expressão “estamos todos no mesmo barco” começou a ser muito repetida, tornando-se um clichê. O tempo – seis longos meses de muito sofrimento físico e emocional – mostrou que trata-se de um equívoco. Nós – os habitantes deste planeta chamado Terra – até podemos estar passando pela mesma tempestade em meio a um mar revolto. Mas o barco de alguns é bem mais seguro e confortável que o de outros.
Todos, sem exceção, sofreram com a Covid-19. Os melhores e mais caros hospitais registraram alto número de óbitos relacionados ao coronavírus. São situações que mostram o quanto ter dinheiro nem sempre é a solução. Isso também ficou claro em reflexos da crise não diretamente ligados à doença. Há crianças nascidas em famílias de classe média e alta apresentando problemas psicológicos devido ao fim das aulas presenciais e redução do contato com colegas. As mães que assistem este isolamento dos filhos não podem recorrer ao saldo bancário pra oferecer alívio.
Mas, acrescente a esta dor, não ter alimento em casa, precisar trabalhar e não ter com quem deixar a criança que está sem aulas, assistir a tentativas frustradas de acessar o ensino online em um celular antigo e sem internet de qualidade. O barco desta mãe é bem mais frágil que o daquela que tem, através do acesso às melhores e mais atuais tecnologias, meios de minimizar a crise. Para alguns, a dor foi além da de não ter restaurante aberto e ter de recorrer ao delivery e alcançou o sofrimento de ver uma criança ir dormir com fome.
A crise gerada pelo coronavírus, como em geral acontece, atingiu de uma forma mais intensa aquelas pessoas cujas fragilidades já eram mais expostas. São as que ocupam os postos de trabalho que mais dependem da presença física. O advogado, a professora, engenheiros, jornalistas em alguns casos, e outros tantos profissionais, com alguns ajustes, passaram a trabalhar em casa. Muitos médicos, através da tele-medicina, também. Mas e quem trabalha fazendo faxina, por exemplo? E a cozinheira do restaurante que fechou as portas? E os entregadores? Estes profissionais não tiveram escolha. Seus trabalhos não se fazem pelo computador ou smartphone. Se não perderam o emprego, enfrentam ônibus lotados, tentam se proteger como podem – nem sempre há álcool gel pra passar nas mãos – e encaram o medo. Porque há alguém os esperando em casa. Sim, todos sofrem. Mas para alguns este sofrimento alcança outro nível. A desigualdade não é algo que possamos ignorar.