Costumo buscar o significado etimológico das palavras para melhor interpretar os textos que leio, especialmente os mais antigos, como a Bíblia ou os clássicos. Inegável que as palavras podem adquirirnovos significados com a passagem do tempo, mas os antigos escritos devem ser lidos com a acepção que tinham à época em que foram compostos ou do lugar em que foram redigidos.
Assim foi que, algum dia, buscando me abeberar melhor de Paulo, o apóstolo dos gentios, quando escreve conselhos sapiensais aos romanos, apoiei-me em literatura especializada para saber exatamente o que o pregador que construía tendas intentava ensinar. Em Romanos capítulo 12, versículo 16, na versão de João Ferreira de Almeida revista e atualizada, Paulo recomenda: “Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar de serdes orgulhosos, condescendei com o que é humilde; …”
O verbo condescender, claro, conhecia seu significado hodierno, mas o que poderia aprender com Paulo sobre ser condescendente com os que estão abaixo das minhas condições? Ser complacente, adequar-me à vontade de outrem sob qualquer justificativa?
O verbo foi traduzido do grego para o latim vulgar “condescendere”, cujo significado etimológico é “descer junto”, ou, descer para junto. O que Paulo estava dizendo era que, se nos percebemos em melhores condições física, social, cultural, intelectual, espiritual, etc, devemos descer o degrau e nivelarmo-nos com os hipossuficientes de toda espécie. O gesto permite que os olhares estejam na mesma linha. Orgulho é quando se tem um olhar de teco-teco, apontado para cima. Condescender, em Paulo, não diz sobre complacência com erros, mas com fraquezas.
A abertura da Copa do Mundo do Catar no último domingo no Estádio Al Bayt, surpreendeu ao trazer o ator americano Morgan Freeman como mestre de cerimônias. Freeman, como vozeirão que invejo, fez um discurso que abordou inclusão, diversidade e união dos povos.”A Terra é a ‘tenda’ de todos. Juntos, podemos fazer o chamado para todos se juntarem a nós”. “Sou bem-vindo?”, pergunta Al Muftah, jovem youtuber qatari que participou do evento. “Todos são bem-vindos. Esse é um convite para todo o mundo”, respondeu o astro americano.
Nascido em 2002, Al Muftah nasceu com uma má formação congênita que fez com que tenha apenas a parte de cima do corpo. Entrou no estádio andando sobre os braços como se pernas fossem. Freeman, então, condescendeu. Abaixou-se e se sentou no chão para conversar com Muftah. Naquele momento, uma das mais aclamadas lendas de Hollywood desceu ao nível do jovem qatari que, naquele momento e local, representava a parte da humanidade que luta por igualdade de tratamento. O cerimonial não proveu nenhum equipamento que elevasse Muftahà altura de Freeman. Era necessário demonstrar a condescendência como virtude dos que almejam que a terra seja de fato uma tenda única que abrigue toda a humanidade.
Morgan Freeman, como Paulo, em terra estranha, condescendeu com as fraquezas, não com os possíveis erros da cultura e das tradições qataris.