As veias abertas da Ramiro Barcelos

Nos meus tempos de guri, pouco se chamava a Ramiro Barcelos pelo seu nome próprio. Era a “rua principal”. Era quase exclusivamente nela que se transitava, em razão de que era na Ramiro que estava o principal comércio e os bancos.

Era pela rua principal que desciam os ônibus urbanos e havia paradas a cada quadra. Antes dos monoblocos da Viação Montenegro, bem antes, entretanto, por sobre o leito da rua corria trem. E já houve postes de luz bem no meio da via. A Ramiro nasce no bairro Santo Antônio e deságua no Rio Caí, para usar uma metáfora fluvial. Na verdade, a Ramiro partiu do Porto das Laranjeiras e atingiu os altos do Santo Antônio.

Era pela Ramiro que o Vitorino se deslocava do bairro para o centro. É na Ramiro que está fincado o Café Comercial, mais tradicional que quera pilchado. Era pela Ramiro que desfilavam alunos e professores no dia da pátria. A Ramiro era, então, a rua principal.

O tempo se encarregou de levar consigo as pessoas e a estética da rua. Os prédios e o casario se foram desvanecendo até sumirem. Não há nada na Ramiro que lembre o seu glorioso passado. Talvez, o Café Comercial. É ali que os guris etcetera e tal.

O passado escondido sempre deixa um rabinho para fora da toca. A Ramiro também tem seus podres que tentava esconder. Amiúde estes segredos afloram. Nos últimos dias com mais frequência.
Há uma tubulação de água potável sob a Ramiro. Só nos damos conta dela quando se rompe e faz aflorar e desperdiçar o precioso líquido insípido (nem tanto), inodoro (menos) e incolor (menos, menos).

O duto que transporta água ao longo da rua principal não suportou o peso da idade e entregou a rapadura. Foram tantos vazamentos nos últimos dias em pontos diferentes ao longo da via, tanto abre-e-fecha buracos, que o segredo da Ramiro foi descoberto: a rua guardava sob si uma tubulação esclerosada, velha, que em seus devaneios suponha-se vivendo, ainda, os anos dourados da Ramiro. Não vista, não era lembrada nem pelo Poder Público nem pela companhia de saneamento. Jazia em profunda paz, somente quebrada pela escavação do solo para um conserto rápido de um de seus acidentes vasculares hemorrágicos.

A Corsan não presta favores. Presta serviços estipulados contratualmente com o Município. O presente contrato foi ajustado entre as partes durante o último governo Percival. O documento prevê substituição das tubulações antigas, muitas ainda metálicas, e a construção de estações de tratamento de esgoto. Sonha, Tonha!
Agora não deu para esconder o urinol debaixo da cama. Foi preciso substituir parte do ramal hidráulico que percorre a Ramiro.

A obra de dias enterrou o último glamour da rua principal. A polvadeira que levantou fez gritarem os comerciantes e residentes do local. Pareceu-lhes a velha Ramiro, dos tempos dos trens e cavalos e do chão batido. O asfalto, já tão marcado por indeléveis cicatrizes, foi sulcado e novamente remendado.

Há muitas veias abertas ao comprido da Ramiro. Há remendos antiestéticos e desconfortáveis para a mobilidade urbana. E estamos acostumados que fechamento de buracos e recapeamento asfáltico não são fatos da natureza.
Ao contrário de tubulações enterradas que ficam esquecidas, contratos devem ser cumpridos e fiscalizados.
A propósito, colocarão remendos novos em asfalto velho? Não é recomendável, segundo Jesus.

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