A diferença entre a qualidade de vida de cidades ou de países diferentes tem a ver com as decisões concretas que essas comunidades tomaram ao longo de sua história e continuam tomando. Na origem dos grupamentos humanos, essas decisões eram tomadas pelas principais famílias, pelos clãs. O aumento em tamanho e em complexidade dos grupos exigiu mecanismos mais sofisticados para se decidir dentro da comunidade e pela comunidade. Ao menos desde os gregos e os romanos, decisões coletivas são precedidas por alguma forma de deliberação política emoldurada por regras jurídicas. A trilogia Oresteia, de Ésquilo, e a peça Antígona, de Sófocles, ilustram bem essa delicada passagem de uma ordem familiar de laços sanguíneos para uma justiça política impessoal. Em certo sentido, essa passagem não é apenas um acontecimento histórico, consumado, mas um aspecto lógico que precisa ser reafirmado ainda hoje, e a cada momento, novamente.
Embora cada indivíduo possa ter uma opinião sobre se é mais urgente reformar o cais ou construir passarelas sobre a rodovia, numa sociedade mais complexa que um clã, somente determinadas opiniões, tomadas por certas pessoas e segundo determinados procedimentos, é que serão consideradas dotadas de autoridade a ponto de valer pela opinião do todo e, assim, promover uma alteração concreta na realidade. Obviamente, num regime democrático como o nosso, todos – sem exceção – podem manifestar sua opinião sobre a conveniência de determinada obra pública, mas a deliberação e a decisão sobre a execução ou não dessa obra são prerrogativas daqueles a quem a comunidade confere poder para tanto.
A distinção entre regras de comportamento (é proibido jogar lixo no chão) e regras que conferem poder (cabe ao prefeito organizar o recolhimento do lixo) é a distinção mais importante não só do direito (especialmente do direito constitucional), mas também da política. Quem enxergou de maneira mais lúcida essa distinção foi o filósofo britânico Herbert Hart (1907-1992), que as chamou de regras primárias e regras secundárias. Um sistema moral é constituído basicamente por regras primárias, que estabelecem o que é proibido, o que é permitido, o que é obrigatório. Ocorre que um sistema composto apenas por regras primárias padeceria de graves defeitos: (I) ele não se atualiza facilmente (costumes só mudam com gerações), (II) ele seria muito confuso na identificação daquilo que a regra exige (agredir alguém é proibido, mas o que significa exatamente agredir?), (III) ele seria muito impreciso na identificação de fatos e autores, deixando, em última instância, para o tribunal da consciência individual a pena relativa a cada infração.
Os remédios para essas insuficiências são regras secundárias, que não estabelecem condutas proibidas ou obrigatórias, mas que conferem poderes a autoridades para que definam com clareza as regras primárias (regras de competência legislativa) e para que julguem os casos concretos e apliquem as devidas sanções (regras de competência judicial). O direito é um sistema que entrelaça regras primárias e regras secundárias, mas sua essência são essas últimas.
Quando esse entrelaçamento recebe um desenho específico e passa a ser aplicado numa comunidade concreta, temos uma constituição. E tanto a concepção teórica de uma constituição como a sua realização genuína, na prática, são tarefas da política.