A principal atividade do intelecto prático, cuja excelência os medievais chamavam de prudentia, é a deliberação. Sobre ela, Aristóteles formulou um princípio enigmático: deliberamos não sobre fins, mas sobre meios (Ética Nicomaqueia III). O desenvolvimento completo da tese exigiria um curso inteiro de ética. O princípio parece ferir nossa liberdade, mas isso não procede. Agir como ser humano é alterar a realidade com base em razões, e não por acaso, por natureza ou por necessidade.
A existência de uma ciência sobre o mundo em que o homem é senhor de suas ações depende de algum ponto de apoio, que, em Aristóteles, é a noção de fim. Na medicina, o fim é a saúde; na estratégia, a vitória; na economia, a riqueza; na arquitetura, a casa. Em todos esses casos, aquilo que ocupa a posição de fim não será objeto de indagação ou de dúvida por parte do agente. O médico não se questiona se deve buscar a saúde, mas como vai curar o paciente de carne e osso que está à sua frente. As dúvidas e a margem de decisão ocorrem no domínio daquelas coisas que estão disponíveis para a realização do fim, que chamamos de meios.
Um exemplo: pego a bicicleta na garagem e saio de casa para ir à aula de judô. Posso até ir de carro, ou mesmo a pé, e sobre isso posso até ter dúvidas sobre qual é o melhor meio. Mas neste caso não está sob discussão o desejo do fim, a saber, ir ao judô, que é justamente aquilo que explica a atividade de sair de bicicleta. Aquilo que ocupa a posição de fim não é objeto de ponderação, mas é justamente o critério para a tomada de decisão. Ao deliberar, rejeito a possibilidade de ir a pé (meio alternativo a ir de bicicleta), porque essa alternativa apresenta algumas desvantagens: eu não chegaria a tempo ou eu chegaria muito cansado…
Evidentemente, aquilo que ocupa a posição de fim numa situação, pode, em outra situação, ocupar a posição de meio. Se, antes, a pergunta era: Por que pegas a bicicleta e sais de casa? Ao que a resposta era: Para ir ao judô. Agora, a pergunta é: Por que vais ao judô? E a resposta será: Porque o médico mandou praticar algum esporte. Ir ao judô ocupa, nesse novo ângulo, a posição de meio, não mais de fim, e, assim, passa a ser objeto próprio da deliberação. Ir ao judô foi resultado de um processo decisório que culminou num vencedor: foi preferido ao futebol e à natação, porque o primeiro tinha levado a muitas lesões no joelho no passado, e o segundo, a irritações na pele por causa do cloro. Toda decisão (ponto de chegada da deliberação) supõe um critério e este é o fim – aquilo que ocupa a posição de fim, seja lá o que for, em uma situação particular. Nesse último caso: atender à prescrição médica.
O passo seguinte de Aristóteles é de interditar o percurso do infinito, o que inviabilizaria a passagem do desejo para a ação. Para que o desejo não seja vão e possa de fato mover, é preciso admitir um ponto de apoio – algo que seja desejado por si mesmo e que não possa ser convertido, numa relação superior, a algo que ocupa a posição de meio e que, portanto, extrai seu fundamento de outra coisa. Se tudo pode ser posto nessa cadeia de “conversões” de fins em meios, então nada seria desejado por si e não haveria movimento. Está delimitado o campo da responsabilidade jurídica e moral do ser humano: sua capacidade de tomar decisões – não sobre fins, mas sobre meios!