O livro Cem Anos de Solidão1, de Gabriel García Márquez, conta a história do Coronel Aureliano Buendía,do Partido Liberal, durante a guerra civil perpetrada para retirar o Partido Conservador do poder. Após 20 anos sem que ela tenha avançado, a comissão do Partido Liberal se reuniu,com o Coronel, para discutir a encruzilhada da guerra. Pediam, em primeiro lugar, que ele renunciasse à revisão dos títulos de propriedade de terra para recuperar o apoio dos latifundiários liberais.
Pediam que renunciasse à luta contra a influência clerical para obter apoio do povo católico. Pediam, por fim, que renunciasse às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e legítimos, para preservar a integridade dos lares. Surpreendido, pois essas seriam as bases do Partido Liberal, o Coronel Aureliano Buendía, sorrindo, afirmou: – Quer dizer, então, que só estamos lutando pelo poder. Imediatamente foi replicado por um dos Delegados: – São reformas táticas. Por enquanto, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois, veremos.
Esse trecho é a moldura que tem como pintura a política brasileira: vivemos, após a redemocratização, em1988, uma democracia de promessas não cumpridas, cujo efeito recente é a sua recessão. Tamanhas são elas que em março de 2019 a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou um projeto de leique obriga os Partidos Políticos a seguirem o seu plano de partido. Em termos populares: está se tentando proibir o “estelionato eleitoral”.Os partidos políticos, na sua maioria, transformaram-se em empresas privadas: são controlados por poucos, que atuam como se fossem seus donos, definem as coligações a seu bel prazer e controlam o fundo eleitoral.Tais fatos restam claro sempre que há eleições municipais, estaduais, federais e, até mesmo, para as mesasdiretoras do Congresso Federal. O exercício da democracia deveria ser visto como uma corrida de revezamento, em que o eleito, após o seupercurso, exausto, passa o bastão para o próximo. Mas isso também não acontece. O mandato, muitas vezes,permanece por gerações na mesma família: o espaço democrático infelizmente é limitado.E as consequências não poderiam ser piores.
A década 2020 começou com a pandemia causada pela covid-19, a qual deixou claro que vivemos numa sociedade extremamente desigual. Pouco mudou: as promessas se repetem epermanecem não cumpridas. E assim caminhamos cada vez mais para a beira do precipício da incerteza, com a grande maioria da população, durante o dia, esperando um milagre (promessas) e, à noite, um prato de comida. Contudo, ainda que tenhamos todas essas diversidades, não podemos esquecer que sem política não hádemocracia. Assim, necessitamos de partidos políticos autênticos, que sigam os seus planos político e de orientação, queprezem pela alteridade de seus dirigentes, praticando internamente a democracia, que observem a fidelidadepartidária e tenham caráter nacional. E, acima de tudo, que preguem pela diversidade. Por fim e de forma imprescindível, fazem-se necessárias condições mínimas para a participação democráticados cidadãos.
Segundo Boaventura de Souza Santos, são três: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que se alimentar e a sua família tem prioridades mais altas do que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando participa. Sem isso, continuares esperando, esperando, esperando…
*Marcelo Martins Piton é também SubDirigente do Núcleo de Defesa Cível e mestrando em direito.