Querida filha, vou chamá-la assim porque neste momento ainda não sei com qual nome te batizarei no futuro. Na verdade, não sei quantos são os anos que nos separam. Apenas desconfio que ainda tenha uma porção deles. Não tenho certeza do tipo de família que terei pra te oferecer. Serás mais uma filha única pela vida inteira? Ou terás irmãos? Será que chegará na minha vida de forma planejada ou será a maior e mais desafiadora de todas as surpresas? Como tu pode perceber, neste momento – junho de 2020 – eu sei quase nada do que diz respeito a você. Mas tenho a intuição de que um dia nós iremos nos conhecer.
Mesmo tendo poucas certezas, resolvi escrever neste momento por ele ser único para toda a humanidade. E desejo que você saiba dele pelo ponto de vista dos livros de História e por grandes obras cinematográficas, mas, também, pelo meu modo de vê-lo. Em 2020, quando você não era nem mesmo imaginada ainda – menos pela sua avó, que já sonhava com a neta há bastante tempo – o mundo parou, literalmente. Uma doença gravíssima alastrou-se por todo o planeta. Muito antes dela chegar até nós, sabíamos que ela nos alcançaria, mas saber com antecedência não mudou o curso da tragédia e, tal como um vilão de história em quadrinhos, vimos ela levar gente que amávamos e mudar nossa forma de viver.
Nós fomos impedidos de abraçar, de beijar, e até de nos aproximarmos uns dos outros. Pais e filhos passaram meses sem poder se visitar. Eu entendo que você tenha dificuldade de imaginar, é mesmo bastante surreal. Só que muito do que hoje para você é normal, surgiu ou pelo menos ganhou força e alastrou-se pelo mundo porque o que era habitual já não podia ser feito. Absolutamente tudo tornou-se diferente. A gente reaprendeu a existir, numa vida bem mais afastada uns dos outros. Assistir filme de dentro de carro? Isso só é algo que você conhece porque em 2020 os cinemas se transformaram num lugar perigoso e, então, algo que a minha geração considerava coisa do passado, voltou e ganhou sua versão moderna. É, definitivamente, o que é antigo pode voltar a qualquer momento.
Tá, eu sei que, pra você, é muito “normal” estudar na frente do computador. Sair de casa e encarar o trânsito apenas pra trabalhar é um absurdo no seu ponto de vista. Compras então… que perda de tempo. Mas, no “meu tempo”, ir ao shopping e andar pra lá e pra cá enquanto escolhia a calça jeans perfeita era um passeio. E dos mais desejados entre nós, mulheres. E isso nos foi tirado por culpa dessa tal pandemia! Ah! Tem uma coisa que, tenho certeza, você compreenderá! Ir ao parque, pra brincar, passear ou se exercitar, estava proibido. Sim, o Parque Centenário fechado! É, filha, foram tempos difíceis.
Todas essas medidas ocorriam para que a gente saísse menos de casa e então a doença se espalhasse mais devagar. E, quando saíamos, era necessário usar máscaras.Você pensou em super-heróis? Não, não era bem esse tipo de máscara. Mas, pensando bem, talvez aí na frente a gente se lembre desse período em que vivemos como um grande filme de ação. Melhor! De ficção científica. Daqueles que começam com os cientistas anunciando a tragédia e sendo ignorados pelas autoridades para, logo adiante, serem exaltados como os únicos a salvarem o planeta Terra. Quando você ler essa carta, tudo já terá passado e a minha geração contará com orgulho que venceu uma pandemia. Dirá que tirou lições importantes dela e que a humanidade evoluiu com aquela dor. Tomará que seja assim, minha filha. No futuro, a gente se encontra e descobre juntas se é isso mesmo.