Escrever essa coluna não foi fácil. Passei horas olhando para o computador. O documento do Word ali, em branco, e as letras não se pintavam nele em uma dança sincronizada de palavras fluindo naturalmente, como ocorre na maioria das vezes. Tentei falar sobre vários temas: material escolar e como essa época é um sonho para as crianças que estão escolhendo seus itens para logo começarem as aulas; coronavírus, os cuidados e as fake news que já circulam por aí, e tantos outros.
Mas não tem como fugir desse tema: a violência contra a mulher, que diariamente faz vítimas. Nessa quinta-feira, 30, em Porto Alegre, ocorreu júri popular de Evandrios Martins dos Santos, assassino confesso da ex-companheira Mariane Isbarrola e da mãe dela, Terezinha Pereira da Silva. Um ataque premeditado no apartamento de Mariane, enquanto as filhas do casal, então com 4 e 7 anos, dormiam sob a aparente segurança do lar, logo ali, do outro lado da parede. Mariane era terapeuta ocupacional no Caps de Montenegro e diariamente atendia a mulheres vítimas de violência doméstica. Isso não a impediu de subestimar as ameaças e tornar-se mais um dado na triste e crescente estatística do feminicídio. Evandrius foi condenado a 44 anos e oito meses de prisão em regime fechado.
Na terça-feira, 28, foi notícia nacional o caso ocorrido em Venâncio Aires, em que a vítima, Micheli Schlosser, 25 anos, beija seu algoz, Lisandro Rafael Posselt, 28, durante o julgamento. Ele tentou matá-la com cinco tiros, cujas balas ainda estão alojadas no corpo da mulher. Sua sentença foi fixada em sete anos em regime semiaberto. Nas redes sociais, inúmeros são os comentários julgando a atitude de Micheli, e teve até quem desejou – pasmem – que Lisandro tenha “melhor mira da próxima vez”.
Essa frase chega a embrulhar o estômago. Claro que, para quem olha de fora, a atitude dela é inadmissível e abre margem para um retrocesso na luta contra a violência doméstica. Porém, o índice de mulheres que voltam para o agressor após um caso de violência é altíssimo. Os motivos podem ser inúmeros: dependência emocional, financeira e até a crença de que, como foi relatado por Micheli, após uma conversa, “haveria a possibilidade de as coisas melhorarem”. Inclusive, há a Síndrome de Estocolmo, em que a vítima, apaixonada pelo agressor, desenvolve o instinto de protegê-lo, assumindo a culpa pelo crime. Algum desses foi o caso? Somente profissionais que talvez acompanhem Micheli podem responder.
O que não é admissível é que a sociedade aponte novamente o dedo para a vítima e a responsabilize pela violência sofrida. E isso é estrutural em uma sociedade em que os meninos são criados para serem “machos fortes e dominadores”, provando o tempo todo sua masculinidade e forçando-se a ser quem cuida das meninas. Por outro lado, elas são ensinadas desde muito cedo a sonhar com contos de fadas românticos, nos quais a mocinha frágil aguarda por seu protetor, que matará o dragão para tomá-la nos braços. Somos ensinadas que o amor não é fácil, que homens são assim mesmo e que precisamos tentar “consertá-los” para casar, ter filhos e viver a própria historieta, a qualquer custo. E às vezes fica difícil acreditar em um amor leve e sem tapas e beijos.
Sim. Pode ser revoltante pensar que uma pessoa deseje viver com alguém que tentou tirar a sua vida. No entanto, não são todas as mulheres que tiveram a oportunidade de se ‘empoderar’, sentir-se donas do seu destino e enxergar que a violência doméstica não começa em cinco tiros, em várias facadas ou com um braço quebrado. Este já é o desfecho de uma rotina iniciada muito antes, que se estende em um ciclo de flores e espinhos que, pouco a pouco, fragiliza a vítima e ‘empodera’ o agressor até que a morte os separe.
Nunca saberemos o que se passou entre quatro paredes, tanto no caso de Micheli quanto no da terapeuta ocupacional Mariane. Mas, que esses casos sirvam para que aprendamos a não revitimizar quem já sofreu com a agressão e para que a violência doméstica seja debatida de forma profunda, em todas as suas nuances. Porque se o ciclo não for rompido, o fim é apenas um.