“Os reflexos das luzes neon, espelhadas nas poças da chuva, entregavam o estado mal cuidado daquelas placas que, mesmo por entre a forte chuva que caia, teimavam em se manter acesas, piscando como se seus fins estivessem próximos. E, em meio aqueles guarda-chuvas transparentes, cujas imagens embaçadas pela torrente que enfrentavam distorciam a paisagem de concreto e piche que se elevava desde o chão ao mais altos dos arranha-céus, eu via aquele mar de pessoas, desejosas de uma vida decente, ainda que para isso, tivessem que nascer de novo. Essa era a cidade que eu amava, e essa também era a cidade que eu odiava, onde a tecnologia era de ponta e a vida não valia nada”.
A descrição acima é muito comum em cenários cyberpunk, onde é previsto um futuro tecnológico distópico, quando a tecnologia será tão avançada que poderemos trocar órgãos e membros por outros artificiais, eletrônicos, com funções superiores, mas, em contrapartida seremos tão infelizes e a vida tão sem sentido, que viveremos apenas através de vícios e prazeres virtuais tão intensos que a realidade vai perder o gosto.
Falta muito para chegarmos nesse momento? Hoje temos carros autômatos, já existem experiências com órgãos artificiais, córneas com tecnologia de câmeras de alta resolução, inteligência artificial que conversa com você quase como um ser humano. Hoje podemos reconstruir orelha, ossos, e diversos tecidos através de células tronco.
A cada dia a tecnologia barateia e se torna mais acessível. O mundo online é o novo mundo real e a maioria das pessoas passa agora mais tempo nele do que nunca. E, então, vem aí o Metaverso, da empresa Meta, antiga Facebook, que levará todo o conceito de “online” para outro patamar. Novas relações se darão de forma completamente virtual, sem sequer haver um segundo de toque físico. Negócios bilionários serão feitos tomando um whisky feito de bits com seus signatários a centenas de quilômetros de distância, mas sentados na mesma sala, olhando um por do Sol belíssimo no topo dos conglomerados que controlam as marcas e o mundo. E é aí que nasce, finalmente, meu querido cenário de Cyberpunk. Onde a vida vale pouco, e a tecnologia custa menos ainda.
Parece terrível, e provavelmente é; mas pensar em dirigir em uma noite chuvosa repleta de placas neon, vendo através dos meus olhos com zoom óptico 3x e visão noturna, enquanto escuto meu synthwave no meu implante intracraniano de alta definição e conexão UHS com meu smartphone, é verdade, me dá um certo comichão. Admito: quero. Venho de uma geração que cresceu vendo Bladerunner, Star Wars, Robocop, O Vingador do Futuro, O Exterminador do Futuro, Tron, Dredd e tantos outros filmes do estilo; como também jogando jogos como Shadowrun, que é o puro néctar do Cyberpunk, diretamente inspirado em obras-primas da literatura como “Neuromancer” e “Andróides sonham com ovelhas elétricas?” dos mestres William Gibson e Philip K. Dick.
Então vamos nos preparar para sermos oprimidos pelas policias particulares dos grandes conglomerados de empresas, para quem os países se ajoelham, pedem dinheiro e fazem vista grossa, enquanto nossos corpos são substituídos por peças artificiais e nossa mente jogada em um mundo de bits tão reais que jamais iremos querer sair dele.
Sim, parece um futuro distópico. E seria, se já não estivéssemos vivendo nele.