Devem ter notado meus olhos pequenos. Não eram antes. Eram vivazes e atentos. Sabiam decifrar o silêncio dos outros, o medo dos outros. Ficaram murchos. A pele flácida por cima… a catarata. A luz incômoda. Estou sentado em frente ao portão.
A cadeira é confortável. Penso que antes as coisas eram mais simples. A vida, a cidade, o mundo. Era só trabalhar e não querer mais que o fruto do trabalho. O governo cuidava da gente. Os governos sempre cuidam, como vocês sabem.
Os filhos, porém, gostam de contestar os governos. Do alto de sua inexperiência, sempre querem mudar o mundo. Você mostra que estão errados. Não adianta. Além dos governos, contestam a família, a autoridade paterna, a igreja.Contra estas rebeldias, usei o papel educador do grito alucinado e da mão forte. Quando tremiam e o terror os afastava de mim, eu dizia aos sorrisos: não tenham medo. Não precisam ter. O que fizeram? Um dia, foram embora. Mas isso não me incomoda. Queria que fossem. Sequer lhes dei a chave do portão.
Não, não sinto remorso. Nem a menor culpa. Não me desculpo. Estou certo. Eles, errados. Hoje sou só um velho sentado em frente a um portão. Mas não foi sempre assim.
Acho normal abandonar o ninho. Pessoas como eu pouco têm a ver com pessoas como eles. Querem ser livres. Logo, logo vão ver que esta bosta não existe. Liberdade é uma armadilha. Quando você se enreda nela, ou morre de frio, ou morre de fome. Eu? Não sei do que vou morrer.
Nestes 80 anos, o que mais vi foram pessoas pagando pelos pecados do mundo sem terem algum. Mães vendo filhos definharem sugando seus seios, inocentes sucumbirem da própria inocência. Mulheres marcadas pela mão pesada dos maridos. Homens marcando a mão pesada no rosto das mulheres. Era um mundo. Um mundo que funcionava. Agora querem outro. Ninguém sabe se funcionará.
Odiava os churrascos em família. Quando havia um. Eu queria comer às onze horas da manhã. Eles diziam que bacana era o ritual. Conversas, música, risadas e, ao final, até brigas, o que levava o assado às quatro da tarde. Eu trocaria tudo por espetos rotativos. Raramente permiti.
Ninguém passa o portão. Já faz alguns anos. Estou aqui sentado em frente a ele e tenho a chave. Às vezes, penso que não fui um bom homem. Por isso, ninguém volta. Até ela a levaram. Ela não quis ir, apesar das centenas de hematomas, do rosto marcado, da moral aviltada, dos anos de desmoralização psicológica e física que empreendi com método e perseverança. Não, não fui um bom homem para ela. Fazer o que fiz… Mas tivemos nossos bons momentos… Eles a levaram. E ninguém nunca mais voltou.
Pecar, todo mundo peca. Às vezes, nem eu acredito do que fui capaz. Mas fiz o que naqueles dias tinha sentido. Eles não me compreenderam. Sei que a velhice não me inocenta. Sim, eu os amava. Mas também amava tantas outras coisas. É muito difícil conciliar desejos. Ontem mal consegui levantar do vaso. Também cortaram a água. Tudo bem. Tem a chuva. Não há alma no mundo.
Meus olhos embaçados de lágrimas, solidão e cataratas me impedem de ver direito. Pessoas no portão. Eu sorrio e aceno. Mas vão embora. Não! Não! Esperem!, eu grito, mas minha voz rouca de velho não ecoa. Meu coração acelera. A chave. Ponho a mão no bolso. Ela cai no barro com meu tremor.
Era ela. Ela! Não pude ver, mas era ela. Queria voltar. E eles. Todos eles. Queriam voltar também. E não pude abrir o portão. Como não pude antes abrir os portões da vida inteira.