Brasil, o país do futuro

28/10/2020
Diário,
Quando eu era criança, sonhava com o futuro, imaginando o que ele nos reservava: carros voadores, pílulas de alimentos, máquinas de teletransporte e tudo o mais que desenhos como Os Jetsons e filmes como De Volta para o Futuro inspiravam.
Sei que ando formal e fria demais, e que até mesmo você, diário, o detentor das minhas memórias secretas, perdeu o status de querido. Depois que Eles reformaram os dicionários, proibindo o uso de 60% dos vocábulos que conhecíamos, inclusive, e principalmente, aqueles relacionados ao afeto, todos nós ficamos econômicos. Racionar, além da ração diária, palavras e carinho tem sido prerrogativa do povo brasileiro porque a força do hábito é algo extraordinário. Ainda mais quando o hábito é instigado por metralhadoras.

Escrever sempre alimentou meus dias e, agora mais do que nunca, minha fome de liberdade e justiça. Eu preciso sustentar minhas memórias, justamente porque o dia da cura se aproxima. Eletrochoque é o que Eles chamam de cura; cura para os mais diversos problemas: rebeldia, homossexualidade, descrença. No meu caso é porque a cirurgia de extração da língua, pela qual passam todos os escritores e alguns professores, não funcionou. Mesmo sem falar, eu ainda incomodo. E me sinto incomodada. Incomodada com as escolas, que Eles propagandeavam sem partido, e hoje foram encampadas por acéfalos, tornando-se campos de concentração onde os jovens são despidos de humanidade e opinião própria. Incomodada com o trabalho escravo da população, que míngua de fome e definha doente, enquanto os hospitais estão lotados de pessoas para serem curadas de si mesmas, como Eles dizem.

Por isso eu escrevo: para lembrar quem eu sou. Para contar às futuras gerações o que aconteceu depois da fatídica eleição de 2018, quando nossa sociedade se deixou enganar pelo escarrro midiático dessa doença chamada corrupção. Ainda tenho esperança de que algum dia isso tudo há de passar, a tutela do ódio, essa ideologia furiosa, discricionária e punitiva. Impositiva. E aqueles que virão depois de mim têm o direito de conhecer outras verdades, além da verdade dEles, dos livros de histórias dEles, já que os livros antigos foram queimados e os escritores estão sendo curados um a um. Sei que muitos não acreditarão em mim, assim como duvidaram do que aconteceu em 64, e foi assim que chegamos até aqui.

Há dois anos Ele foi eleito, sem ter plano de governo, nem nada. Foi eleito com um simples ideal: a violência. Violência para todos, para o povo. Violência gratuita. O mundo inteiro já conheceu vários ditadores, mas no Brasil houve uma maioria que faltou às aulas de História.

Agora vou parar de escrever, pois é preciso economizar a tinta da caneta, que não tenho licença para usar. Uma ironia, num país onde armas são vendidas no boteco da esquina, necessitarmos carteirinha do governo para comprar lápis e papel. Mas como eu poderia ferir, a Ele e Seus exércitos, se não escrevendo?

Diziam que o nosso país seria um mar de possibilidades, mas só para quem está preso na ilha da verdade absoluta.
O futuro com o qual sonhei ainda é um lugar muito distante. O presente, porém, foi muito além dos meus piores pesadelos.
A charge que ilustra a coluna é uma dentre as tantas que levaram o chargista Jaguar, um dos fundadores do Pasquim, à prisão durante o período do regime militar.

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