Três gerações de trabalhadoras

Não há como negar. O que somos, hoje, e o que buscamos passar para as futuras gerações, são reflexos da forma como fomos criados. Semeando bons ensinamentos, tentando corrigir possíveis erros (às vezes, até, os replicando), acabando refletindo as ações de nossos pais e, por tabela, de nossos avós, bisavós e assim por diante. Nos adaptamos, claro – a sociedade e a visão sobre as coisas mudam com o passar do tempo –, mas é evidente o quanto algumas coisas tornam-se parte de nosso “ser”. As três gerações de mulheres da família Cruz demonstram isso muito bem.

Dona Nancy Elisabetha está com quase 90 anos de idade. Nascida na localidade de Bom Jardim do Caí em 1929, quando nova, tinha muitos sonhos. Dois se destacavam mais especialmente. Ela queria ser professora e queria aprender a tocar violão. “Desde pequeninha, eu sabia ler e escrever”, lembra, com a voz mansa de quem passou por muita coisa nessa vida. “Naquela época, era só uma única professora que dava aula e eu ajudava. Ajudava ela a tomar a lição dos alunos, auxiliava com as contas. Eu sempre gostei disso.”

Mas acabou que nenhum desses dois sonhos se realizou. Do violão, a mãe disse que “era bobagem” a menina aprender, então Nancy simplesmente não teve contato com o instrumento. Quanto à profissão, outras responsabilidades da vida acabaram falando mais alto na vida. “No final, a gente mudou pra aqui, mudou pra ali, então acabei não sendo (professora)”, recorda Dona Nancy. Ela estudou somente até o quarto ano do Ensino Fundamental, assim como as condições da família permitiram aos demais irmãos. “A família era muito grande e, antigamente, se um filho mais velho não ganhava aquele estudo, os outros também não ganhavam”, explica, conformada.

Os anos seguiram. Nancy ajudou a criar os irmãos, casou, teve nove filhos, trabalhou muito e em diferentes atividades que foram surgindo. Novos sonhos apareceram. Hoje, aposentada, ela conta que se desdobrou para que os filhos tivessem uma trajetória diferente da sua, com mais oportunidades. “A pior coisa é a mãe que fica ‘ah, porque isso não presta e tu tem que fazer isso ou aquilo outro’. Isso não se faz. Eu sempre cuidei muito disso e se o meu filho tinha vontade de fazer uma coisa, eu dava todo o apoio”, relata, orgulhosa da forma como conduziu as coisas em sua casa. Todos estudaram rigorosamente e cada conquista dos filhos era comemorada com alegria entre os Cruz.

A filha vendedora
Quatro dos filhos de Nancy herdaram o amor da mãe pela educação e, hoje, são professores formados. Mas ao contrário das negativas da infância, a matriarca apoiou as mais diferentes escolhas profissionais da família. Rosane, uma das filhas, por exemplo, optou por construir a vida no comércio montenegrino e foi muito incentivada. Era sua vocação. “Eu acho que eu já nasci vendedora”, declara. “Tudo o que eu pegava na mão, eu vendia”.

Nascida em 1962 e, hoje, aos 56 anos de idade, ela lembra que seu primeiro contato com o mundo do emprego foi aos dezoitos anos, quando, buscando ganhar um dinheiro só seu, optou por largar os estudos para trabalhar em uma camisaria na cidade. Logo depois, teve a primeira filha e, pouco mais adiante, a segunda. Não voltou mais a estudar.

“Eu fui até o segundo grau do Ensino Médio. Eu tinha todas as possibilidades de continuar estudando, mas dificultou pelos filhos”, conta Rosane. “Isso é algo bem complicado. Eu trabalhava de dia, e minha mãe e meu pai trabalhavam no turno da noite nessa época. Como eu tinha as duas, isso me dificultou, então optei por não seguir, nem fazer uma faculdade”.

A mãe, dona Nancy, fez de tudo um pouco na vida. Auxiliou no armazém do marido, ajudava na roça e na tirada do leite. Por um período, chegou até a gerenciar uma lavanderia própria em casa, quando se mudaram para a cidade. Com os filhos já criados e encaminhados, ela agarrou a oportunidade de trabalhar fora e foi ser cozinheira em uma das empresas do Polo Petroquímico. Lá, somou alguns anos de trabalho com carteira assinada para poder se aposentar um pouco melhor. Fechando os 60 anos de idade, veio a merecida e muito esperada aposentadoria.

Isso mudou as coisas também para a filha Rosane. Com a mãe com disponibilidade de cuidar das netas durante os sábados – na semana, as duas meninas ficavam na creche – ela, enfim, podia seguir sua vocação para o comércio, saindo da camisaria onde atuava para, de fato, trabalhar nas vendas. “Comecei vendendo roupas, como sacoleira. Trabalhava também com unha e maquiagem, que eu gosto muito”, recorda. E com o apoio da família, anos depois, deu um dos maiores saltos da vida. Resolveu empreender no ramo.

Rosane teve loja própria em Montenegro por quase uma década. Mesmo tendo enfrentado dificuldades no período e acabado optando por fechar o negócio, ela lembra com carinho dessa época. “Toda experiência é válida. Tudo vem para a gente como um aprendizado ou para ti conhecer pessoas”, avalia. “Mas é bem complicado de tu ter um negócio, porque o retorno demora e tu tem que investir muito. Eu sempre digo que, para abrir uma empresa, tu tem que ter bala na agulha.”

Boa em se adaptar às condições que a vida lhe impunha, a empreendedora recebeu a oportunidade de trabalhar de vendedora na loja Princesa, no Centro, onde está até hoje. Já se vão mais de quinze anos no estabelecimento. “Eu ganhei esse convite maravilhoso de trabalhar lá e ali eu me encontrei mesmo. Eu adoro trabalhar na Loja e vou me aposentar, se Deus quiser, na Princesa”, coloca, com um largo sorriso. Por dez anos consecutivos, Rosane foi escolhida pela comunidade como a “Melhor Vendedora” no Prêmio Profissionais do Ano do Jornal Ibiá. “Eu tô na profissão que eu escolhi. Para mim, vender é um dom que se resume a respeito, amor e carinho”.

A neta professora
A filha de Rosane, Pamela, chegou a flertar com o segmento do comércio. Nascida no ano de 1990 e hoje com 28 anos de idade, no entanto, ela foi para um lado, foi para o outro e, por fim, acabou parando na antiga paixão da avó Nancy. Resolveu ser professora.

“Eu terminei o Ensino Médio e comecei a fazer faculdade de Comércio Exterior, mas odiava”, recorda. “Aí, quando eu fiz dezoito anos, fui trabalhar no comércio. Mas ali eu vi como eu gostava de estar com as pessoas. O Comércio Exterior não tinha mesmo nada a ver comigo.” Pamela largou a faculdade e, a partir de sua percepção no mercado de trabalho, optou pela Pedagogia.

“Neste ano, eu já termino o curso e pretendo fazer concursos. Mas vou sempre continuar estudando”, ressalta. No momento, a jovem faz estágio na Emef do Bairro São Paulo, como monitora dos alunos com necessidades especiais. Lidando com jovens autistas e com outros déficits, ela reflete o carinho que recebeu na criação da mãe e da avó na forma de lidar com os pequenos. “Professor é algo que tu tem que gostar muito. Eu realmente me achei na profissão”, comemora.

Da experiência profissional e em retrospecto à geração da mãe – que largou os estudos ao fim do Ensino Médio para cuidar da família – e a da avó – que finalizou os seus ainda nos anos iniciais do Fundamental – Pamela reflete como o acesso à educação mudou. “Pra mim, sempre foi muito fácil. O colégio sempre foi pertinho. Depois, eu quis fazer o Comércio Exterior e eu mesmo pagava. Agora neste, de Pedagogia, fiz o Enem e consegui bolsa”, conta.

A mãe, Rosane, adiciona que a cobrança da formação no mercado de trabalho também mudou. “Quando eu comecei a buscar emprego, precisava ter até a oitava série para pegar qualquer serviço. Hoje, para qualquer coisa já exigem pelo menos o segundo grau completo. Digamos assim, se eu fosse sair da loja agora e procurar emprego que exigisse o segundo grau, eu já não pegaria”, salienta. “Não chega mais a ser uma opção tu não fazer até o fim do Ensino Médio”.

Uma visão sobre diferenças salariais
Conforme dados do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, o salário médio pago às mulheres foi apenas 77,5% do rendimento pago aos homens no Brasil. Enquanto eles receberam R$ 2.410,00, elas receberam R$ 1.868,00. Apesar de dona Nancy ter vivido em uma época em que muitos ainda atribuíam à mulher apenas ao posto de donas de casa, as duas gerações mais jovens da família Cruz contam que nunca passaram por nenhuma situação em que tivessem colegas homens ganhando um salário maior para realizar uma mesma atividade.

Elas defendem fortemente, no entanto, uma maior valorização. “Eu nunca passei por isso, mas eu sempre defendo a mulher”, diz Pamela, a mais jovem. “Ainda mais agora que eu virei mãe (ela tem uma menininha de quase dois anos de idade), eu passei a valorizar a mulher ainda mais. Eu nem sei explicar, é algo que só vivendo mesmo.”

Bem humorada, a mãe, Rosane, brinca que a mulher teria até que ganhar um salário extra por somar a atividade profissional com todo o cuidado da casa e dos filhos. “Não é que o homem não ajude, mas cai tudo sobre a mulher. Tudo é a mãe”, concorda Pamela. “Às vezes, é até mais difícil ficar em casa direito, 24 horas, porque tu não para nenhum minuto. Parece até que, quando tu está no serviço, tu não faz tanto como quando tu está em casa.”

“Tem muitos maridos legais hoje em dia, que ajudam, que são parceiros, que dão banho no nenê. Mas nós (mulheres) é muito mais. A gente sabe que tem essa diferença grande nas profissões, mas isso vai mudar. Vai ter o dia em que vai ficar cada um ganhando apenas por seu próprio merecimento”, resume Rosane, esperançosa.

Família Cruz reflete sobre assédio
De três anos para cá, o tema “assédio” vem sendo muito comentado. São atitudes – muitas mascaradas de “brincadeirinhas” – que humilham, incomodam e passam dos limites pessoais de cada um. E são as mulheres, principalmente, as que mais sofrem com isso. Rosane conta que já sentiu na pele o que é ser assediada.

“Hoje, isso já não acontece. Mas eu tinha meus 20 anos, trabalhava indo às 6h30min para trabalhar e tinha ciclista que passava e mexia comigo. Hoje, eu já ando de moto ou de carro, mas sempre tem aquelas olhadinhas, aquelas buzinadinhas”, lamenta. “Quando termina o horário de verão, aí fica mais escurinho na saída do trabalho, é gente parando o carro para oferecer carona. O assédio é toda hora”.

Mesmo que o assunto seja mais abordado pela mídia atualmente, a vendedora conta que, da porta da loja, as situações que presencia beiram o inacreditável. “No pouco tempo que eu tenho de ficar observando, tem homens que assobiam às mulheres, ficam de piadinhas. Fora o que nos contam e o que a gente vê nas redes sociais”, coloca.

A filha, Pamela, admite que também já sofreu situações do tipo. “Até em festa. Passam a mão em ti, tu olha para trás e não vê ninguém”, exemplifica. Com seus quase 90 anos de experiência de vida, a vó Nancy finaliza a conversa com uma colocação pontual: “Isso é uma falta de RESPEITO!”

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