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De invasores a agricultores em família

A reforma agrária está entre os temas que mais causam discussões no Brasil. Sua importância, partindo da prerrogativa de acesso à terra, é insuflada com argumentos de Direito e bíblicos; enquanto o aspecto de Justiça em relação a dividir um bem privado é evocado pelos opositores. A discórdia é alicerçada especialmente nas ações do Movimento dos Sem Terra (MST), visto como partidário e miliciano, tanto que agora corre risco real de ser criminalizado como “terrorismo”. No meio deste momento de debate, o Ibiá atrás à luz um exemplo de sucesso da reforma.

No Assentamento 22 de Novembro a reportagem foi recebida pelo agricultor Demerciano Padilha. Aos 63 anos, ele é capaz de avaliar que há 31 anos fez a escolha certa, ao largar a vida de peão para ingressar no movimento social que pedia um pedaço de chão nesta imensidão do Brasil para tirar seu próprio sustento. No bairro Zootecnia, em área ao lado do Centro de Treinamento de Montenegro (Cetam), ele mostra a pujança de pomares, hortas e açudes com peixes. As vésperas de completar 27 anos de assentamento em Montenegro e Capela de Santana, esse é um exemplo de como fazer reforma agrária eficiente.

E é baseado nesta experiência das 20 famílias que chegaram ao Vale do Caí em 1991, que Demerciano afirma que o programa não deve ser finalizado com a conquista da área de terra. O processo deve ser de longo prazo, iniciando pelp assentamento, mas prevendo acompanhamento de assistência técnica no campo. Linhas de crédito, legalização da propriedade, encaminhamento para venda da produção, diversificação de culturas são fundamentais – ao menos no início – para que as famílias desenvolvam uma propriedade que garanta seu sustento. Hoje, a reforma tem sido fundamentada em um simples largar de pessoas sobre uma área.

Causaram de ser empregados no latifúndio dos outros
Ouvindo do princípio a história de Demerciano, é possível compreender o cerne da reforma agrária. Filho de agricultores na região do Médio Alto Uruguai, ele se criou trabalhando a terra. É isso de que Demerciano sabe fazer. “Nunca fiz outra coisa na vida”, descreveu, com orgulho. Ao lado da esposa Tereza (hoje com 66 anos), criava sete filhos sendo empregado de uma fazenda.

A vida era dura, mas não tinha para onde correr. O Sindicato Rural ajudava, com reuniões e aconselhamentos. Foi em uma dessas que conheceu o falecido deputado Adão Pretto, então líder sindical em Miraguaí, que lhe falou a respeito de um movimento popular reivindicador do direito a terra que crescia no Brasil naquela década de 80. O colono foi aconselhado a entrar no ainda desconhecido MST.

AGRICULTOR tem 10 açudes onde cria 2.000 Carpas. Na Páscoa de 2017 vendeu 1 tonelada de peixe

A justificativa era “deixar de ser empregado”, em que pese que o sindicato de Rodeio Bonito não fosse exatamente engajado ao Movimento e o apresentou como uma boa alternativa da qual deveria se informar. “A gente não queria acampar! Queríamos um governo que fizesse (a reforma) de uma forma legal. Mas vimos que não tinha jeito”, explicou, ao recordar que aquelas 20 famílias eram todas realmente de agricultores.

 

Ocupar e resistir, mesmo sob lonas a “bala”
Assim aqueles desconhecidos reunidos pelo MST partiram para ocupar e resistir, em uma jornada cheia de dificuldades e perigos que durou quatro anos e somou seis ações. A primeira aconteceu em Palmeira das Missões, no Noroeste. As famílias acampavam sob lonas pretas e carregava mantimentos. Mas apesar do sofrimento, Demerciano defende que tomou aquela atitude pensando nos filhos.

O medo acompanhava-os, em especial quanto a reação dos donos das terras invadidas. E de suas recordações, Cruz Alta foi sem dúvida o momento mais difícil. Lá o acampamento foi retirado pela Brigada Militar (BM), com sobrevôo de aeronave, bomba de gás e tiros que resultaram em feridos.

DEMERCIANO acredita que para a reforma agrária dará certo é preciso apoiar os assentadados

Então, finalmente, o grupo chegou ao seu “eldorado”, ao acampar as margens da ERS-240, em Capela de Santana. O governador da época era Alceu de Deus Collares (PDT) que, após dois anos, dividiu e assentou o grupo. Em Montenegro, os 260 hectares cedidos eram patrimônio do Estado. Faziam parte da mesma área que abriga o complexo do Cetam e depois ainda recebeu o campus da Unisc.


Em Montenegro a reforma agrária deu certo
A chegada em Montenegro não teve receptividade. O governo municipal da época mandou a Polícia Militar montar barreira na divisa para impedir a entrada, permitida somente após mostrarem o documento assinado pelo governador. Isso serviu para acirrar o medo da população que passou a descriminar os assentados de muitas formas.

Enquanto isso, os sem-terra não se intimidaram. Foram dois anos morando em baixo de lonas enquanto derrubavam a mata nativa. De forma inteligente firmaram parceria com uma serraria que, em troca de parte da madeira, cortava os troncos em tabuas. Assim foi sendo materializado o Assentamento 22 de Novembro.

Cada família recebeu 13 hectares para cultivar e constituir família. E de fato ali cresceram e se multiplicaram, sendo que o oitavo filho do casal Demerciano e Tereza nasceu montenegrino. Hoje é uma pequena comunidade com cerca de 100 casas, onde vivem netos e filhos dos assentados. Lá planta-se alimentos, mato de Eucalipto, frutas e criam-se animais e peixes.

Famílias cravaram raízes e são montenegrinos

Alguns jovens optaram por empregos na cidade. O que não lhes afasta das raízes de colono, tampouco do compromisso. Eles mantêm a terra da família cultivada, ajudam os pais e cuidando das próprias lavouras aos finais de semana. Uma herança que em breve será real com a emissão de escrituras. Demerciano explica que o assentamento é uma concessão de 10 anos, que deve ser renovada. A terceira acontecerá em 2020.

No entanto, não há risco de perderem a terra que inclusive já foi medida pelo Incra para decretar a posse definitiva. O Estado agora começa o processo de emissão das escrituras, visto como benéfico para os dois lados, pois o Governo arrecada imposto, o agricultor tem garantia de propriedade e facilidade de acesso à financiamentos. “Para nós, isso aqui foi uma loteria”, diz hoje ao olhar para trás.

Ele recorda que foi uma decisão difícil, saírem, ele e a esposa, de onde estavam para reivindicar terra. Hoje, ao ver um teto sobre as cabeças dos filhos de netos, não se arrepende. Com orgulho, embora aposentado, mostra o que construiu em 10 hectares produtivos. O preconceito desapareceu. Os filhos casaram com nativos e seus descendentes nasceram neste chão, fechando assim o ciclo desta migração.

Não tem gente que quer terra para trabalhar

Demerciano não se isenta de falar sobre o que restou daquele movimento que ele conheceu. “Hoje o MST praticamente não existe”, afirma. Ele acredita que o partidarismo tomou conta e assim fragiliza a argumentação dos integrantes. Se não bastasse, a dureza e a falta de garantias deixam o campo pouco atraente, afastando o interesse das pessoas de irem viver da terra.

“Eu lutei porque vivo da terra”, declarou, ao revelar sua crença que atualmente o Movimento não é mais formado por colonos. Daí, o que acontece são pessoas no rural sem nenhum conhecimento de cultivo, qualidade da terra e cultura adequada, época propicia para plantar e para colher. E sem um apoio técnico como esse recebido pelo 22 de Novembro da Emater e Prefeitura, os assentamentos sucumbem.

“Roça é difícil. Tem que ter um recurso (antes da primeira colheita) para comer, para se manter. Se não, não fica na terra”, descreveu. O resultado são dois cenários vistos em algumas regiões, inclusive do Rio Grande do Sul. O primeiro Demerciano chama de “favela rural”, onde a plantação não vingou e as famílias vivem em petição de miséria em lotes abandonados. Quanto não vende e somem. O segundo ele classificou como “asilo rural”, pois, desiludidos, os jovens vão embora deixando para trás os idosos. O agricultor não considera o que é feito no Brasil como reforma agrária, mas sim uma mera distribuição e terra; sem projeto de longo prazo.

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