A transformação de resíduos ou do que era lixo em algo útil reduz custos de produção, gera trabalho e renda, além de contribuir para a preservação ambiental. A empresária Cristiane Gerke explica parte desse processo enquanto caminha entre o maquinário da Allplast – Embalagens Flexíveis, adquirida há três anos, em Montenegro. Até então, a indústria, que já existia há quase três décadas, só trabalhava com material virgem.
Cristiane, no entanto, viu na reciclagem uma oportunidade de ganho financeiro, aproveitando resíduos próprios, como aparas e embalagens que tiveram algum problema de corte ou de impressão. “O antigo proprietário vendia esse material, mas decidi aproveitá-lo, produzindo embalagens recicladas com custos de 30% a 40% mais baixos”, observa. A empreendedora acrescenta que a demanda já existia e vem crescendo, tanto que ela começou a comprar plástico reciclado, uma vez que o resíduo da indústria se tornou insuficiente.
Além do aspecto econômico, a empresária salienta o ambiental com o aproveitamento de um material que, ao ser descartado de forma incorreta, gera danos aos recursos naturais e à saúde. “É uma forma de dar um destino melhor ao que iria pro lixo, faz parte da nossa responsabilidade social”, afirma. A empresária, no entanto, reclama da falta de apoio e acredita que o setor de reciclagem deveria ter algum diferencial na tributação, como incentivo.

Na Allplast, o plástico reciclado representa 10% da produção, enquanto o virgem ainda chega a 90%. Cristiane acredita que chegará a índices iguais para ambos os tipos de materiais. Ela esclarece que há limitações de uso, pois o reciclado não pode ser empregado na embalagem de alimentos. Outro diferencial é quanto à transparência, que só é conseguida com o material virgem. “Se for embalagem branca ou colorida, é só colocar pigmentação no processo, mas o plástico reciclado nunca será transparente”, afirma.
O coordenador do Comitê Sinplast de Reciclagem, Luiz Henrique Hartmann, reforça que a indústria da reciclagem nasceu da necessidade de aproveitamento das sobras, e é um setor jovem em crescimento. Nesse desenvolvimento, evoluiu para aproveitamento de material pós-consumo. Ele acrescenta que esse avanço inclui a instalação de novas tecnologias que garantem qualidade ao produto feito com reciclados, deixando de serem considerados de segunda linha pelo consumidor.
O diretor executivo da associação Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), André Vilhena, reforça o crescimento na indústria da reciclagem e observa que essas empresas são fundamentais para que o ciclo se complete. “Chegamos ao patamar de reciclar 65% das embalagens”, exemplifica. “Há 15 anos, era metade disso”, compara. Ele reforça que o Brasil dispõe de tecnologia para garantir esse processo em praticamente todos os materiais.
Geração de trabalho direto e indireto
Morador do bairro Senai, Ezequiel Schneider, 37 anos, desloca-se até o Centro de Montenegro diariamente para trabalhar. Sem experiência profissional e apenas o terceiro ano do Ensino Fundamental concluído, ele viu na coleta de material reciclável a forma de garantir o sustento. Chegou a providenciar Carteira de Trabalho, mas nunca foi assinada. “Se um dia conseguir emprego, já tenho a carteira”, observa.
Para não ter que se deslocar a pé diariamente até a rua Ramiro Barcelos, ele deixa o carrinho de coleta em uma lavagem de carros durante a noite. De dia, circula pelas vias centrais, disputando espaço com veículos motorizados. Mortadela, como é mais conhecido, concentra seus esforços em recolher papelão, garrafas PET, latinhas e plástico branco em algumas lojas, mas principalmente nas lixeiras. Em uma semana, calcula que as vendas lhe rendem cerca de R$ 120,00. Para reforçar o orçamento, sempre que há algum evento no Parque Centenário, aproveita para recolher principalmente latinhas, material com maior valor. “Consigo uns R$ 2,70 pelo quilo da lata”, afirma. O papelão é o que vale menos, R$ 0,25 o quilo.

Ao encher o carrinho, Mortadela vende o material à Montepel, que compra para revender à indústria de reciclagem. “Acho que o papelão vira caixa de novo e o PET usam para fazer vassouras”, afirma o catador, sem imaginar que as possibilidades de novos produtos são muitas. Do PET, por exemplo, são feitos utensílios diversos, como baldes, escovas, embalagens de produtos de limpeza, tapetes, e inclusive peças de vestuário, entre outros.
Empresa compra dos catadores, separa e prensa o material
Na Montepel, o gestor João Batista Dias afirma ter 30 catadores cadastrados, dos quais compra material reciclável. E há cerca de 30 escolas, a maioria de Montenegro, mas algumas de Brochier, São José do Sul e Pareci Novo, que também vendem material à empresa. Nesse sistema, além do retorno financeiro às instituições, existe a educação ambiental no processo de coleta e separação do lixo envolvendo a comunidade escolar. Dias observa que, ao apresentar a empresa aos estabelecimentos de ensino, realiza uma palestra sobre preservação do meio ambiente e separação correta de resíduos.

O gestor percebe o crescimento do setor e afirma que se tivesse mais material teria mercado na indústria. “A demanda cresceu entre 30% a 40% nos últimos três meses”, calcula. Dias atribui esse aumento à melhora na economia, pois a recessão freia o consumo e, por consequência, a geração de resíduos e a necessidade de aumentar a produção. Seu material segue o caminho da reciclagem em indústrias de vários municípios gaúchos. Além de Montenegro, vende para Sapiranga, Sapucaia, Nova Santa Rita e São Leopoldo, entre outros. “E se tivesse mais, venderia mais”, frisa.
Outra visão sobre o lixo
Boa parte do plástico recolhido por catadores como Mortadela e vendido à Montepel passa pelas mãos de funcionárias como Marcia Regina Motta, 38 anos. Ela trabalha há cinco anos na empresa, separando o material reciclável. Antes disso, nem fazia ideia do que podia ser feito com produtos que acreditava não ter mais utilidade, mas que podem ser matéria -prima. “Mudei minha forma de ver o lixo, vi que é útil e passei a separar em casa também”, acrescenta. Na empresa, são oito funcionários.

Novos produtos
Depois de separado, o material limpo é prensado e segue para as indústrias, onde vira matéria-prima para novos produtos. Aquele que estiver sujo, no entanto, precisa antes passar por uma empresa de lavagem.
Na Montepel, parte do plástico, por exemplo, é vendido à Allplast – Embalagens Flexíveis, onde Cristiane Gerke conclui o ciclo da reciclagem. Na sua indústria, são produzidas novas embalagens utilizadas em estabelecimentos de Montenegro e região.
Valor econômico, social e ambiental do setor
A indústria é responsável pela maior fatia do Valor Adicionado de Montenegro, chegando a 64%, seguido pelo comércio, com 22%, enquanto o restante é dividido entre os setores de serviços e de produção primária. O montante, referente ao ano passado, chega a R$ 2.263.712.398,00.
O secretário municipal da Fazenda, José Nestor de Oliveira Bernardes, acrescenta que, em valores, a participação das cinco empresas de reciclagem do município são pouco significativos, ficando em R$ 323.548,73, representando 0,014% do VA total. Esses valores, no entanto, se multiplicam considerando a geração de emprego na cadeia da reciclagem e o reflexo em outros setores, como os de comércio e serviços. “O valor social e ambiental que representam é grande”, acrescenta Oliveira. “E se não existissem, o que seria feito com o que consumimos?”, complementa.
O presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços (ACI) de Montenegro e Pareci Novo, Waldir João Kleber, observa o crescimento populacional e da expectativa de vida que resulta em aumento no volume de resíduos gerados. E menciona o impacto ambiental do descarte inadequado desse lixo. “Com a reciclagem, as indústrias reduzem seus custos de produção e acontece a geração de um número significativo de empregos nesta cadeia produtiva: catadores, transportadores, trabalhadores das indústrias que produzem novos objetos a partir do lixo reciclado”, acrescenta.
Kleber salienta que há inúmeras vantagens em aumentar o volume de lixo reciclado, como a redução da necessidade de utilização de fontes naturais não renováveis, bem como a de tratamento final com o aterramento ou incineração. “A utilização de papel reciclado diminui a necessidade de corte de árvores e contribui para manter a qualidade do ar”, exemplifica.
Empresas esbarram na alta carga tributária
A importância da reciclagem e da indústria nessa cadeia que garante um destino adequado aos resíduos é consenso entre representantes dos vários segmentos da sociedade. O setor, no entanto, enfrenta dificuldades para crescer.
O diretor executivo da Cempre, Andre Vilhena, observa obstáculos como de comportamento da população, que deixa a desejar na separação do lixo. Por isso, afirma que é necessário investir em campanhas de sensibilização, citando como exemplo o movimento “Separe, não pare”, apoiado pela associação. “E há um gargalo com relação à questão tributária, a indústria não tem o tratamento tributário compatível com sua importância”, acrescenta. Ele esclarece que todos os impostos já cobrados na matéria virgem voltam a incidir no reciclado, situação que considera incoerente.
O presidente da ACI Montenegro e Pareci Novo, Waldir João Kleber, também defende a concessão de incentivos fiscais para o setor de reciclagem. Ele salienta que o aumento do volume de lixo reaproveitado beneficia o setor público com a redução da necessidade de transporte e destinação final do lixo pelas prefeituras.
A economista da Fundação de Economia e Estatística (FEE/RS), Clitia Martins, que realizou seu trabalho de doutorado sobre a reciclagem, defende o estímulo a esse processo considerando seus aspectos sociais, ambientais e econômicos. Na sua avaliação, o ideal é o consumo consciente, evitando compras desnecessárias ou com muitas embalagens, e o reaproveitamento ou transformação daquilo que é descartado. “A reciclagem é fundamental porque reaproveita a matéria pós-consumo”, afirma, lembrando que é uma atividade econômica que gera trabalho e renda. “Às vezes, se acha que é mais barato usar matéria-prima virgem do que reciclar porque falta incentivo a esse setor”, completa.
O coordenador do Comitê Sinplast de Reciclagem, Luiz Henrique Hartmann, acrescenta que a matéria-prima reciclada encarece durante o caminho, agregando custos e com excessiva carga tributária. Ele observa que, além da falta de benefícios, a indústria não tem o reconhecimento merecido nesse processo de transformação do material reciclado.
“A consciência ambiental ainda está engatinhando”
Os fatores econômicos predominam no crescimento da indústria da reciclagem, na avaliação do engenheiro ambiental Fabrício Weiss, que atua na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). “A consciência ambiental ainda está engatinhando no Brasil”, afirma. Ele observa que a necessidade de subsistência fez com que trabalhadores, depois de perderem o emprego e não conseguirem nova colocação, encontrassem na coleta de recicláveis uma fonte de renda.

Com maior oferta desse material no mercado, as indústrias ampliaram ou construíram novas plantas de processamento. “O próprio crescimento econômico do Brasil, num passado não distante, ajudou, pois a indústria de cimento e as de ciderurgia recebem e processam materiais recicláveis”, exemplifica.
Ele afirma que o setor de reciclagem tem um enorme potencial para crescer. Para isso, no entanto, Weiss observa a necessidade de políticas públicas eficazes, com o envolvimento de cooperativa de catadores, com a fiscalização de grandes empresas e órgãos públicos, bem como a ampliação da educação ambiental nas escolas. Para o engenheiro, esse crescimento esbarra na falta de organização e de profissionalismo em todos os elos da cadeia. Ele também defende a concessão de incentivos a todos os envolvidos na cadeia da reciclagem.