DESPESA EXTRA. No ano passado, a Prefeitura gastou mais de meio milhão para atender a decisões judiciais
– Eu aceito dar a entrevista e contar o que aconteceu, mas não quero que meu nome e nem o do meu marido apareçam no jornal.
– Mas por que não?
– Porque é muito triste a gente trabalhar a vida toda e depois ter de depender do governo e da boa vontade das pessoas para não morrer por falta de remédios. Sinto muita vergonha.
É desta forma que inicia a conversa da reportagem do Jornal Ibiá com a aposentada Maria, de 72 anos, viúva do também aposentado João da Silva, falecido no ano passado, aos 76. Atendendo ao pedido, os nomes foram trocados para evitar constrangimentos e para respeitar a dor de alguém que já perdeu muito.
Essa história começa em 2016, quando João recebeu o dignóstico de uma doença cardíaca grave. Ele precisava de uma cirurgia de urgência e como o casal não tinha plano de saúde, o jeito foi raspar as economias de uma vida toda para pagar pelo procedimento. Esperar na fila do SUS era arriscado demais. João saiu do bloco direto para a CTI e suas chances de sobrevivência eram pequenas. As orações de dona Maria e a vontade dele de viver e acompanhar os netos crescendo fez com que se recuperasse depois de alguns meses. Antes de deixar o hospital, porém, recebeu uma sentença: nunca mais poderia deixar de tomar um medicamento que, para as condições do casal, tinha um preço alto demais.
Com a ajuda de um advogado da família, os Silva ingressaram na Justiça contra o Estado e, em cerca de 20 dias, o fornecimento começou. Se tivessem de pagar, o valor mensal ficaria em quase R$ 4 mil. Era muito quando o ganho do casal, somado, alcançava apenas R$ 2.700,00.
Seu João acabou falecendo em 2018, vítima de um acidente de trânsito. Dona Maria ainda tenta se recuperar da perda e, daquele tempo difícil, lembra do sentimento de vergonha e do desalento de ter de recorrer à Justiça para manter o marido vivo. “Se não fosse o juiz, ele teria morrido muito antes. Mas é muito triste a gente ter de ir ao tribunal para conseguir uma coisa que deveria ser um direito, depois de tantos anos de impostos pagos”, afirma.
Casos assim são muito mais comuns do que se pensa. A judicialização da Saúde virou uma grande bola de neve, que vem esmagando as finanças das prefeituras de todo o país. Somente no ano passado, a Administração Municipal de Montenegro respondeu a quase 170 processos e o pagamento de remédios, exames e cirurgias determinado por juízes, dos quais muitos eram de responsabilidade do Estado, custou aos cofres públicos em torno de R$ 520 mil.
“O ideal seria poder fornecer tudo aquilo que a população precisa, mas não há orçamento que suporte. Então a gente faz o possível com a verba que tem”, explica a secretária municipal de Saúde, Cristina Reinheimer. Ela pede que os usuários do SUS não confundam restrições financeiras com má vontade. “Sempre procuramos dar um jeito na situação”, garante.
No custeio, divisão de responsabilidades
No que diz respeito ao fornecimento de remédios aos pacientes do SUS, Município, Estado e União possuem responsabilidade solidária. À Prefeitura, em tese, cabe a compra e a distribuição dos mais simples, como os empregados nos tratamentos de diabetes, hipertensão leve, doenças respiratórias e antibióticos básicos. Já as fórmulas de uso continuado competem à Secretaria Estadual, que usa a estrutura das unidades municipais para a distribuição. À União, cabem os medicamentos do chamado “componente estratégico”, como vacinas e controle de doenças endêmicas.
De acordo com a secretária Cristina Reinheimer, para ter o acesso, o paciente vai até o setor, preenche alguns documentos e o processo é encaminhado ao Estado, que autoriza o fornecimento. A retirada ocorre nas farmácias da própria Secretaria e na da UBS Centro. Quando falta – e isso é comum – inicia um drama que normalmente só termina nos tribunais. “Em geral, os processos visam o fornecimento de remédios que não estão nas listas ou que cabem ao Estado, mas a Prefeitura acaba sendo acionada”, explica. Normalmente, a Justiça determina o bloqueio de valores na razão de 50% para cada ente da federação. A compra então é feita pela Prefeitura, mas o ressarcimento dificilmente ocorre.
Quando a busca é por fármacos que não estão nas listas de nenhum dos entes públicos, há um procedimento diferenciado a seguir. “Nestes casos, quando o paciente recebe a receita, ele vem até aqui e a gente fornece uma certidão, informando que não estão nas listas. Com este documento, eles vão à Justiça”, explica a advogada Marilisse Belmonte, assessora especial da Secretaria Municipal da Saúde. A maioria das sentenças é favorável aos pacientes, o que obriga a Prefeitura a providenciar a compra. “Há medicações que custam mais de R$ 20 mil”, observa, destacando o impacto dessas ações sobre o orçamento da pasta.
A judicialização, porém, não está restrita à farmácia. O Município também é alvo de ações pedindo exames e cirurgias, situação que se agrava quando, em virtude da crise no Estado, os hospitais suspendem atendimentos eletivos.
Para reduzir a judicialização, a Secretaria está fazendo um trabalho de aproximação com a Defensoria Pública no sentido de atender aos pedidos antes do ajuizamento dos processos, pela via administrativa. Ao mesmo tempo, investe na regulação e mantém um canal permanentemente aberto com o Estado. O resultado já aparece. No primeiro trimestre deste ano, o número de ações caiu para 17. A média mensal diminuiu de 14 para seis.
Principais demandas
– Entre as medicações mais solicitadas judicialmente, estão Escitalopram (tratamento e prevenção da depressão), Rivaroxabana (prevenção de Acidente Vascular Cerebral – AVC), e Brometo de Tiotrópio (usado no tratamento de doenças respiratórias).
– As cirurgias mais requisitadas pela via judicial são as Ortopédicas e Traumatológicas, Cardíacas e Oncológicas.
– Quanto aos exames e procedimentos, em 2018, os mais solicitados foram Ressonância Magnética, Tomografia Computadorizada e Biópsia.
Falta de verbas impõe limites à concessão
Gestão ética e eficiente, boa vontade, empatia e recursos na quantidade necessária são remédios essenciais para acabar com a judicialização e manter vivos os dependentes do Sistema Único de Saúde. Infelizmente, estas fórmulas não estão disponíveis em qualquer farmácia.
A Constituição Federal prevê, em seu artigo 196, que a saúde é “direito de todos e dever do Estado”. O preceito é regulamentado nos mesmos termos pela Lei 8.080, de 1990. Contudo, na prática, nem todos são alcançados. A falta de verbas impõe limites que obrigam muitas pessoas a buscarem seus direitos na Justiça.
Com 45 anos, Josélia Santana de Campos é mãe de dois adolescentes e enfrenta uma verdadeira moratona para dar conta das obrigações. O mais velho tem doença respiratória crônica e precisa tomar uma medicação que custa em torno de R$ 300,00 por mês.
Como nem sempre tem o dinheiro, ela está se preparando para ir à Justiça. “Eu vinha pagando no começo, mas depois que meu esposo me deixou, não teve mais como. Fui na Saúde e me disseram que esse remédio não tem pelo governo. Tentei que o médico trocasse, mas ele disse que era perigoso. Então vou ter que entrar na Justiça. Me disseram que, na Defensoria Pública, a gente consegue”, relata Josélia.
De fato, grande parte das ordens judiciais emitidas contra a Prefeitura e o Estado, na Comarca de Montenegro, são fruto de ações deste órgão. O defensor público Laoni Poletto explica que, todos os dias, são atendidas de 50 a 60 pessoas e mais da metade busca a solução de problemas na área médica. As demandas são variadas: de medicamentos para doenças cardíacas e exames oncológicos a cirurgias bariátricas só para citar alguns exemplos.
Josélia provavelmente encontrará a ajuda de que precisa. Ela atende ao primeiro critério para ter acesso ao serviço: renda líquida familiar de até três salários mínimos, o que hoje soma R$ 2.994,00. “A Defensoria Pública atua em favor daqueles que têm menos condições financeiras”, esclarece Poletto. Os demais devem recorrer a advogados particulares.
Para encaminhar a ação, o paciente precisa entregar um laudo médico especificando o medicamento, exame ou o tratamento necessário e a doença que a pessoa tem. “Não pode faltar o CID, Código Internacional de Doença”, alerta. Também é necessária uma descrição das consequências do não uso do remédio ou da não aplicação do tratamento e a indicação da urgência da concessão.
Laoni comenta que, via de regra, a Justiça concede uma liminar determinando que a Prefeitura, o Estado ou ambos atendam à solicitação, com o objetivo de preservar a vida do paciente. Sobre o alvo do processo, a Defensoria entende que existe responsabilidade solidária entre os entes federados. “Atualmente, nós estamos ingressando com as ações tanto contra o Estado quanto contra o Município”, explica o defensor público.
O atendimento às demandas costuma ser rápido, em virtude da urgência envolvida na grande maioria dos casos. “Assim que o pedido chega a nós, o processo é ajuizado. Havendo decisão liminar, o juiz fixa um prazo para o atendimento, que normalmente é curto. Se a ordem não for cumprida, a gente pede o bloqueio de valores nas contas do Município, do Estado ou de ambos e aí então é feita a compra do remédio ou a contratação do serviço”, detalha Poletto.
Embora esteja sediada em Montenegro, no prédio do Forum, a Defensoria Pública atende as comunidade de mais seis municípios da Comarca (Brochier, Maratá, Pareci Novo, Salvador do Sul, São José do Sul e São Pedro da Serra). Ainda que em menor número, também há demandas nestas cidades por medicamentos e outros procedimentos médicos.
O PAPEL DE CADA ESFERA
Os medicamentos oferecidos pelos SUS são divididos em três grandes grupos, denominados componentes. Eles se diferenciam por objetivo de tratamento, financiamento, logística e custo.
– Componente básico – responsabilidade das prefeituras
É o grupo que contem os medicamentos e insumos destinados ao tratamento precoce e adequado dos problemas mais comuns e/ou prioritários, passíveis de atendimento em nível básico, incluindo aqueles relacionados a agravos e programas de saúde específicos. Está presente nas listas municipais, selecionados conforme o perfil endemiológico de cada município.
– Componente estratégico – responsabilidade da União
É o grupo de medicamentos e insumos destinados à prevenção, ao diagnóstico, ao tratamento e ao controle de doenças e agravos de perfil endêmico, de risco endemiológico para a população, com importância epidemiológica, contemplados em programas estratégicos do Ministério da Saúde, como HIV/AIDS, tuberculose, hanseníases, malária, leishmaniose, doença de Chagas e outras doenças endêmicas de abrangência nacional ou regional, tais como cólera, esquistossomose, filariose, influenza, meningite e tracoma. Estes medicamentos têm controle e tratamento definidos por meio de protocolos e normas estabelecidas.
– Componente especializado – responsabilidade dos Estados
É o grupo de medicamentos direcionados ao tratamento medicamentoso de doenças raras, de baixa prevalência ou de uso crônico prolongado com alto custo unitário, cujas linhas de cuidado estão definidas em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas – PCDT, publicados pelo Ministério da Saúde – MS. Nesta lista, estão os antidepressivos, imunossupressores (para transplantados) e remédios para doenças de pele, degenerativas, hepatites, glaucoma, alergias, hipertensão, síndromes coronarianas, entre outras.
– As listas completas estão disponíveis no site do Ministério da Saúde.
Número de processos cresce em todo país
A judicialização da saúde é um fenômeno nacional no Brasil. É cada vez maior o número de pessoas que precisa ir aos tribunais contra os governos e contra os planos de saúde para garantir medicamentos, exames e cirurgias. Em todo o país, a quantidade de ações, em primeira instância, aumentou de 41,4 mil para 95,7 mil anuais entre 2008 e 2017. A diferença é de 130%, segundo pesquisa divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No mesmo período, na segunda instância, a diferença foi ainda maior em proporção, pulando de 2,9 mil para 40,6 mil processos por ano.
Para o presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal, uma das razões para este cenário é o baixo investimento, além da má distribuição que ocorre no Sistema Único de Saúde (SUS). “Este cenário se reflete em dois fenômenos. Na saúde pública, há pouco investimento e investimentos mal direcionados e geridos, o que afeta diretamente o cidadão contribuinte que, muitas vezes, acaba não sendo atendido. No âmbito da saúde suplementar, o grande problema é a regulação. As agências reguladoras no Brasil têm deixado de atuar de forma eficaz”, completa.