Vozes negras em destaque no 14 de Maio: o dia seguinte

Evento refletiu sobre os desafios enfrentados pela população negra

A 11ª edição do seminário “14 de Maio: O Dia Seguinte”, promovido pela Cufa Montenegro, em parceria com o Sesc e a Prefeitura, reuniu no Teatro Roberto Cardona uma série de atividades ao longo dessa quarta-feira, 14, com o objetivo de resgatar e valorizar a história, a cultura e os desafios enfrentados pela população negra.

A manhã de atividades iniciou às 8h30 com a abertura oficial do evento, seguida do painel “Resgate Negro no Vale do Caí”, conduzido por Rogério Santos, jornalista, sociólogo e coordenador da Cufa Montenegro. O encontro marcou mais uma edição de um dos maiores eventos sobre debate racial do Rio Grande do Sul, reunindo vozes importantes na luta por igualdade e reconhecimento da população negra.

Para a secretária do Hip Hop no Estado, Jaqueline Pereira, a Negra Jaque, o 14 de maio carrega um profundo simbolismo. “Eu sou uma mulher oriunda de uma periferia e da cultura hip hop, e pensar no 14 de maio é pensar no nosso futuro, então é um dia muito importante. Todo dia é dia de combate ao racismo, é um dia de debate estrutural, de projetar essas gerações futuras, porque a gente quer pensar nessa continuidade”, destacou. Ela reforçou que eventos como esse são espaços valiosos de troca e escuta. “É um dia de reflexão não só das pessoas pretas, mas de toda a sociedade”, diz.

“Eventos como esse são um encontro de partilhas de saberes e trajetórias de muitas pessoas que estão trabalhando na base, mas que muitas vezes não conseguem ser ouvidas”, completou Negra Jaque.

Já o coordenador da Cufa RS, Junior Torres, destacou a dimensão que o evento alcançou e seu impacto no Estado. “É um evento que já é referência no Rio Grande do Sul, e acredito que seja um dos maiores eventos de debate racial. A importância está em promover esse diálogo com a sociedade sobre questões fundamentais para a cidadania. Hoje, Montenegro é referência neste tema, com todo o trabalho que o coordenador da Cufa Montenegro Rogério Santos e sua equipe vêm desenvolvendo”, disse.

Violência e População Negra no Brasil

Dentro da programação extensa e diversa, o painel “Violência e a População Negra no Brasil”, realizado no início da tarde, se destacou por dar voz a mulheres negras que estão na linha de frente da luta por justiça, igualdade e políticas públicas. A mesa foi composta por quatro mulheres com trajetórias distintas, mas unidas por um mesmo compromisso: combater o racismo estrutural e suas múltiplas formas de violência.

Participaram a delegada Tatiana Bastos, a juíza Priscila Palmeiro, a historiadora e ativista cultural carioca Pâmela Carvalho e a assistente social montenegrina Carliane Pinheiro, coordenadora do Núcleo Maria Maria da Cufa Montenegro.

Logo no início de sua fala, Pâmela Carvalho destacou a relevância histórica do território gaúcho para a luta negra no Brasil. “Estamos falando de um território central para pensar as histórias, as conquistas e os processos de incidência das populações negras no Brasil”, afirmou. Ao refletir sobre o 14 de maio – o dia seguinte à abolição da escravidão –, Pâmela pontuou que a assinatura da Lei Áurea não significou liberdade plena. “A gente acorda no dia seguinte e percebe que os direitos não foram efetivados”, disse.

Com trajetória vinculada ao Centro Afro-Carioca de Cinema e ao coletivo Redes da Maré, ela ressaltou que a violência contra a população negra é um projeto político de longa duração. “O Brasil fez uma escolha política de construir suas relações com a população negra a partir da violência. Primeiro com a escravização legalizada. Depois, com a criminalização da cultura, da estética, da religiosidade negra”, afirmou.

Historiadora e ativista cultural carioca Pâmela Carvalho abriu o painel “Violência e a População Negra no Brasil”

Em um relato pessoal, Pâmela compartilhou o caso de seu primo, baleado por um policial da reserva após ser confundido com um criminoso. “Um policial da reserva abriu fogo contra a moto em que ele estava, pelas costas. Eles pularam de um viaduto para fugir e ainda foram perseguidos”, contou. Segundo ela, o desfecho positivo só foi possível graças à mobilização social.

A delegada Tatiana Bastos trouxe o olhar da segurança pública para o debate. Diretora da Divisão de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância da Polícia Civil do RS, ela ressaltou o racismo como fenômeno estrutural e herança da escravidão. “Negros não são escravos, foram escravizados”, afirmou. Tatiana enfatizou que o combate ao racismo precisa ser uma tarefa coletiva, especialmente entre os não negros. “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, disse, citando Angela Davis.

A delegada também sublinhou o papel da intelectualidade negra na formação de novas gerações, citando referências como Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Djamila Ribeiro. Ela destacou ainda o papel da Delegacia de Combate à Intolerância no RS, uma das poucas no país especializadas no enfrentamento ao racismo. “A atuação vai além da persecução penal. Passa também por formação, projetos educativos e conscientização”, pontuou.

A delegada Tatiana Bastos trouxe o olhar da segurança pública para o debate

A juíza de Direito e mestra em Direito Constitucional, Dra. Priscila Palmeiro, que atuou em Montenegro por 4 anos, celebrou o espaço de troca proporcionado pelo evento. “Estou muito feliz de estar aqui nesse espaço de fortalecimento de ideias e principalmente de ações antirracistas”, disse. Para ela, o racismo precisa ser discutido a partir de dados. “Os dados jogam na nossa cara. Eles estão aí, eles precisam ser discutidos. Às vezes a gente vê, mas a gente não enxerga”, pontuou.

Citando números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a juíza chamou atenção para a seletividade penal. “70% da população carcerária hoje é negra. 40% estão presos por tráfico de drogas”, afirmou. A juíza destacou que esse padrão revela sintomas de uma “doença social” e citou uma fala da promotora Lívia Santana Vaz: “O que não se conta é invisível, e o que é invisível não se tem direitos”, disse.

Representando a realidade local, a assistente social e coordenadora do Núcleo Maria Maria da Cufa Montenegro, Carliane Pinheiro, trouxe um depoimento sobre sua trajetória e atuação nas periferias.

A juíza de Direito e mestra em Direito Constitucional, Dra. Priscila Palmeiro, falou sobre o papel do Judiciário no combate ao racismo

“Sou de favela e periferia de Montenegro, então a gente sabe de onde a gente vem”, relatou. Carliane destacou que sua atuação como liderança comunitária começou cedo, focada em combater a violência doméstica contra mulheres e meninas negras. “Todos os dias a gente tem informações de alguma menina, de alguma mulher que sofreu algum tipo de violência”, disse. Ela ainda trouxe um dado alarmante. “A gente tem hoje no Brasil 45 milhões de mulheres negras. E quem mais sofre violência doméstica são as mulheres e meninas negras. E são elas que sofrem violência mais cedo, na faixa de 14 a 25 anos”, pontuou.

Após o painel “Violência e a População Negra no Brasil”, programação seguiu com outros debates, como a participação do rapper MV Bill sobre escritas negras. O encerramento, à noite, foi com a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, que falou sobre as mulheres negras e toda a sua potência.

A assistente social e coordenadora do Núcleo Maria Maria da Cufa Montenegro, Carliane Pinheiro, trouxe o panorama local

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