PRESTES A COMPLETAR 104 anos, ela relembra tempos em que o silêncio era a trilha da cidade
No mês em que Montenegro celebra 152 anos de emancipação (dia 5), dona Maria Jacques dos Santos se prepara para comemorar um marco raro na vida: seus 104 anos, no próximo dia 31. Desses, 85 foram vividos nesta cidade que, para ela, nunca foi apenas um lugar no mapa, mas um caminho inteiro de memórias e mudanças.
Natural de Porto Alegre, Maria chegou a Montenegro em 5 de fevereiro de 1940, recém-casada com o capitão da Brigada Militar Breno José dos Santos. Ambos vieram viver na cidade devido à instalação do 5º Batalhão da Polícia Militar no município. O deslocamento foi feito de trem, numa época em que não havia estradas nem iluminação pública em boa parte das casas. Após cinco horas de viagem, desembarcaram na antiga estação férrea, hoje Estação da Cultura, onde precisaram esperar pelo único táxi da cidade para poder ir para casa.
Naquele tempo, Montenegro era de chão batido, cercada pelo silêncio, o som que se ouvia era do sino da Igreja Evangélica. “Era um silêncio muito triste. Quando eu ouvia um barulho meio estranho, corria na frente da casa para ver, mas era uma carreta de boi passando”, recorda.
Primeiro, o casal morou na Rua Capitão Cruz. Poucos dias antes da grande enchente de 1941, mudou-se para uma casa na Rua Ramiro Barcelos, ao lado da hoje Drogaria Progresso, e por fim se estabeleceu na Rua Coronel Antônio Inácio, onde Maria ainda reside. Ela viu o lar de idosos Recanto das Vovós nascer em um terreno onde antes só havia maricás, enfrentou a enchente de 1941 e acompanhou o crescimento da cidade a partir do cotidiano simples.
Naquela época, o leiteiro fazia as entregas na porta das casas. A carne vendida no açougue não vinha embalada, sendo preciso levar um recipiente de casa para transportar o alimento. “Eu levava um prato, voltava com a carne ao ar livre”, relembra. Não havia saneamento básico, e a retirada de dejetos das residências era feita pelos chamados “cubeiros”, pessoas que recolhiam os cubos instalados nas patentes para descartá-los longe das casas.

Dona Maria dedicou a vida ao lar e à família. Mãe de Nelson Antônio e madrasta de Sônia e Áurea dos Santos, ela presenciou o casamento das “filhas do coração” na antiga Igreja Matriz, localizada em frente a onde hoje está a Catedral São João Batista.
Bordadeira talentosa, reunia-se com as amigas para bordar. Participava dos bailes do Clube Riograndense, frequentava o balneário com os filhos e assistia aos filmes do Cine Goio-em. “Era uma época de muita alegria”, relembra.
A centenária conheceu o Supermercado Mombach quando ainda funcionava em uma casa de madeira. Montenegro era pequena, mas cheia de vida, como descreve dona Maria: “Era uma casa, uma loja, uma farmácia e acabou”, resume.
Com o tempo, o silêncio deu lugar ao som constante dos carros e ao movimento urbano. Mas “vó Maria” segue firme. Atualizada, usa a internet para ver filmes, séries e desenhos antigos. Gosta de açaí, de café colonial e de recordar, com detalhes, as etapas da cidade que acompanhou crescer.
A história de Montenegro também é feita da vida de quem a construiu com o tempo, como dona Maria. Cada lembrança dela é também um retrato de quem fomos e de como chegamos até aqui. Que seus 104 anos nos lembrem que o futuro da cidade também depende de escutar o passado.
