Medo e incerteza após um ano da catástrofe

CATÁSTROFE. Com falta de ação dos governos, moradores querem deixar bairros inundados

Água cobriu as colunas da grade na casa de Deivid

No dia 30 de abril de 2024 iniciou um fenômeno climático no Rio Grande do Sul, que nos primeiros dias de maio se transformou na maior catástrofe natural de sua história. Milhares de gaúchos foram severamente flagelados, com perdas materiais, mas também humanas. Na região, a enchente do Rio Caí superou todas as marcas até então conhecidas; alcançando em Montenegro 11,70 metros (dia 3 de maio de 2024) no Porto das Laranjeiras, em Montenegro. O avanço pelas ruas centrais chegou às esquinas da rua Olavo Bilac com Capitão Cruz e Ramiro Barcelos.

Um ano não foi o suficiente para a população dos bairros inundados se recuperarem inteiramente; inclusive emocionalmente. Medo é o sentimento prevalecente quando chove forte. Entre casas abandonadas e desabadas, e um cenário de placas de “vende-se”, quem ainda está no mesmo lugar faz planos de sair. Em maio de 2025, o que os cidadãos de Montenegro cobram é ação efetiva dos governos para evitar, ou ao menos reduzir, os danos de um fenômeno desta magnitude.

“O que a prefeitura pensa em fazer, se pensa em fazer? Alguém tem que pensar no futuro”, declarou o vigilante José Deivid de Souza, 44 anos, há 15 com casa própria na rua XV de Novembro, no Ferroviário. Ele conta que construiu sobre um aterro muito acima das demais, o que deixava as cheias no portão. Mas em 2será o “novo normal”, então cobra por um projeto de contenção.

“O problema todo é o pós-enchente. Estou incomodado com a inércia da Prefeitura. Parece que eles não estão nem aí”, desabafa. Ele não fala apenas do seu prejuízo – cerca de R$ 50 mil na casa, R$ 12 mil no carro e dívida no cartão de crédito -, mas de todos os moradores, comércio e indústria. Sua realidade tem sido de apreensão quando chove forte, e sem a opção real de deixar o Ferroviário. “Minha casa desvalorizou,  mesmo que eu queira vender, vão me dar troco de banana. E o bairro está atirado!”.

Moradores rezam por ajuda para conter nova catástrofe. Taiane deixou sua casa antes que desabe, e hoje paga aluguel na Otaviano Moojen

Eles não conseguem deixar o Ferroviário

Quem tentou deixar tudo para trás não teve sucesso. Foi assim com o casal Eduardo e Tatiana Torres, ambos 44 anos, que colocou à venda a casa (ainda financiada) de R$ 270 mil por R$ 115 mil e não recebeu proposta. Também localizada na rua XV de Novembro, há uma quadra da várzea do Caí, foi quase coberta por inteiro, em prejuízo ainda não calculado e que incluirá aluguel em Caxias do Sul até janeiro de 2025.

“A gente voltou agora pra reorganizar a vida”, declara. Essa opção que lhes restou após 7 meses impôs uma reforma total da casa de alvenaria, que sempre foi atingida pelas enchentes, mas que em 2024 foi testada por algo “fora do comum”. Por este motivo, Eduardo e Tatiana também cobram um projeto de contenção, algo que, passado um ano, ainda não ouviram falar. “A cada chuva, quando passa muitos dias de chuva, sempre vêm o medo de novo”, revela Torres.

Pouco mais distante do leito do Caí, na Menino Deus, quase esquina com Olavo Bilac, dona Nilva Dimmer, 73, anuncia a bela casinha verde que cuida com zelo, e conta uma história tocante. Após uma vida na roça, há três anos vendeu o sítio para morar na cidade; investiu R$ 400 mil na residência; pegou três enchentes e um assalto; e agora tentar vender, sem sucesso, por R$ 300 mil. O dilema da idosa é que somente com este negócio no Ferroviário fechado é que poderá se mudar para perto da filha, na Timbaúva. Sem experiência com cheias e surpreendida na catástrofe, perdeu muitos dos bens, repostos em parte pelo auxílio Federal de R$ 5.100,00. Mas este foi o estopim para abandonar o endereço. “Judia muito da gente”, lamenta.

Torres retornou ao Ferroviário em janeiro e agora está reformando a casa que foi inundada até o teto

Prefeitura faz limpeza de arroios e esgotos

No entendimento da população, uma maneira de evitar outra enchente desta magnitude é realizar o desassoreamento de arroio e do próprio rio. Neste sentido, a Prefeitura de Montenegro afirma ter realizado “diversas obras emergenciais”, destacando investimento de mais de R$ 3 milhões na remoção de sedimentos, resíduos sólidos e vegetação dos arroios Costa da Serra, São Miguel, Montenegro e da Cria. Em fevereiro inicio limpeza com hidrojateamento das galerias pluviais em bairros que sofreram com alagamentos, investimento de R$ 190 mil.

Em relação ao conduto da Rua Capitão Porfírio, afirma que a falta de limpeza por quase 15 anos praticamente transformou os sedimentos acumulados em “pedra”, por isso será um trabalho lento. Todos estes investimentos foram feitos com recursos próprios. A Administração Municipal também cobra o desassoreamento do Rio Caí pelo Estado, pois o Município não tem autonomia e nem base legal para realizá-lo.

Diversas casas estão à venda na mancha de inundação, mas desvalorizadas em seu valor original

Promessa é dique e corta-rio

Em relação a conter as enchentes, a Prefeitura afirma que atua junto aos deputados federais pela atualização de um projeto regional de contenção; que prevê a construção de diques e canal artificial “corta-rio”, orçado em R$ 44,4 milhões. “O dique será erguido ao longo das áreas mais vulneráveis do perímetro urbano e servirá como uma barreira física contra o transbordamento”, diz a nota enviada pela assessoria de imprensa. Já o corta-rio será criado para desviar o excesso de água em momentos críticos, aliviando a pressão sobre o leito principal e minimizando os riscos de inundação.

O prefeito, Gustavo Zanatta, avalia que medidas emergenciais são importantes, mas a cidade precisa avançar para soluções de longo prazo. “Estamos mobilizados para transformar esse projeto em realidade”, afirma. Zanatta observa, porém, que o projeto não foi concebido para acabar com as enchentes, mas diminuir seu impacto. “Por isso, é preciso que seja reavaliado para definir se ainda atende às necessidades de Montenegro no novo cenário climático”.

Realidade da agricultura

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Rural (SMDR) direcionou atenção à reconstrução de estradas, acessos e à desobstrução de bueiros (70% foram atingidos), em investimento aproximado de R$ 1,5 milhão. No âmbito da recuperação produtiva, em parceria com o Sicredi, investiu R$ 119.997,05 na distribuição de insumos, conforme detalhamento: 20.500 kg de adubo; realização de 27 análises de solo; 167 kg em mudas para viveiro; 164 unidades de substrato de morangos e 6 caixas de abelha (Agricultura, R$ 61.578,00; Pecuária, R$ 55.634,00; Análises de Solo, R$ 2.785,05).

Projeto de prevenção em elaboração

O Governo do Estado, por meio da Secretaria da Reconstrução Gaúcha (Serg), afirma que desde maio de 2024 já repassou mais de R$ 12,50 milhões a Montenegro, conforme constam no painel de transparência da crise climática. As verbas teriam sido direcionadas para ações efetivas, como auxílio a famílias atingidas, Defesa Civil, apoio a empreendedores (Pronampe Gaúcho).

“Sobre o sistema de proteção contra as cheias do Caí, que abrange três cidades – Montenegro, Pareci Novo e São Sebastião do Caí –, a Serg ressalta que o anteprojeto está na etapa de elaboração do termo de referência”, informou ao Ibiá. As próximas etapas são o projeto executivo e início das obras, todavia sem data prevista. O investimento será de R$ 14,5 milhões, com recursos enviados pelo Governo Federal e execução pelo Governo do RS.

No dia 24 de abril, o Conselho do Plano Rio Grande – projeto Executivo para enfrentar a catástrofe – discutiu esses sistemas. O governador, Eduardo Leite, e o secretário da Serg, Pedro Capeluppi, detalharam o andamento dos projetos das bacias, que são acompanhados pelo Comitê Científico do Plano Rio Grande.

Desde janeiro um grupo técnico entrre Estado e União também atua. “É um trabalho que não é só do

Estado, envolve também a União e os municípios. Cada um tem as suas responsabilidades”, destacou Leite. Ele alertou, no entanto, à complexidade dos planos de proteção, o que demandará muito tempo.

Novas residências pelo Estado

Montenegro receberá 68 casas definitivas pelo programa “A Casa é Sua”, versão “Calamidades”, que está em fase de documentação para assinatura do termo de cooperação com o Estado, por meio da Secretaria de Estado da Habitação, em investimento de R$ 9,4 milhões

“Industrial vai acabar virando terra de ninguém”

Cortês observa as rachaduras evoluírem pelas paredes e o piso ceder, mas não sabe ainda o que fará

Essa foi a declaração de Elcir Cortês, de 59 anos, morador da rua Otaviano Moojen, no bairro Industrial. A casa é herança de sua esposa, Marilene Fagundes, 61, criando um vínculo emocional, mas que agora não afasta o desejo de mudança que, segundo ele, se espalhou pela comunidade. Mesmo erguida sobre colunas, a construção de alvenaria está severamente afetada, com aparição constante de rachaduras pelas paredes e sinais de afundamento do piso. “Eu penso muito que um dia possa haver uma erosão e ela virá abaixo com a gente dentro”, confirma Cortes.

O casal conseguiu se requer com o Auxílio Reconstrução e doações, e agora pensa em um novo lar. “Eu não quero nada de graça! A nossa saída agora é achar uma casa, um apartamento que eu e ela possamos pagar. Já tem muita gente que não quer mais viver aqui.” comenta. Para Elcir, apesar de viver entre rachaduras e declives, o que importa é estar vivo e com quem ama. “Eu não perdi nada na enchente. Não perdi filho, mulher, familiares e ainda estou vivo. É por isso que eu não perdi nada.”, completa.

Burocracia para encontrar novas casas

Taiane da Silva Dapper, 20, sempre morou de frente para o Rio Caí, na esquina entre Otaviano Moojen e Álvaro de Moraes, familiarizada assim as enchentes. Ela conta que, devido à grande força das águas em maio de 2024, a estrutura da sua casa de madeira ruiu, em risco de desabamento. “O telhado cedeu, as paredes se moveram para os lados e eu tive que sair de lá porque tenho bebê pequeno”, relata. A jovem chegou a morar com amigas e há cerca de seis meses paga aluguel na mesma rua, ainda perto do Rio.

“Quando começa a chover muito a gente já se apavora de novo. A gente tem medo de vir outra igual aquela, mas agora já estamos mais preparados.”, comenta. Ela foi contemplada pelo Compra Assistida, programa da União que dá casa com limite de até R$ 200 mil, mas está com dificuldades para encontrar uma que se enquadre. “Eu tô procurando, e assim que eu conseguir eu vou embora. O que eu mais quero nesse momento é sair deste bairro”, completa.

Lar de Alessandra não tem mais condições de habitação, ela cansou do bairro e espera uma casa da União

Mãe quer um novo lar

Alessandra de Vargas Pinheiro, 45, também está contemplada no Compra Assistida e com dificuldade para encontrar imóvel dentro do parâmetro. Ela conta que já enviou duas opções à Caixa, porém acaba ficando sempre em processo de análise. “É muita burocracia esses processos. Depois dessas duas casas ainda consegui achar um apartamento. Mas pra minha filha com autismo fica ruim, porque é menor”, explica.

Neste processo, Alessandra sobre ainda com a validade dos documentos vencendo, obrigando a renovação.

Hoje essa mãe paga aluguel, em frente ao antigo lar demolido na rua Adelmo Boos, em terreno que pertence ao ex-marido. “Depois disso, eu quero, e eu vou, sair daqui do Industrial. Não aguento mais enchente”, finaliza.

O que será feito para evitar novas cheias?

Fábio Luís Ennick, 41, morava de aluguel na rua Alfonso Henck, no Industiral, em maio de 2024. Depois da enchente, se mudou, com esposa e filho, para a casa que herdou do avô, há uma quadra de distância. Fábio é irredutível ao declarar que não deixará a comunidade onde nasceu e foi criado pelos avós, onde conhece todo mundo. “A opção agora pra nós, que não queremos deixar o bairro, é melhorar as coisas, colocar uma draga (dragagem). Claro que a gente tem medo de que aconteça de novo, agora não tem mais um padrão dessas cheias”, declara.

Ennick se refere ao fato daquela casa nunca ter sido inundada, sendo que em 2024 foi severamente danificada. Ele precisou fazer reparos parciais para poder morar, e assinala que foram sem auxílio de governo algum.

O processo para receber material de construção foi negado, sob alegação que não são alcançados para obra dentro da mancha de inundação. “Eles querem que a pessoa saia daqui. Porque agora, onde moro, se tornou área de risco. Não era antes”. Ele faz coro com aqueles que não têm informações sobre o que será feito para evitar nova catástrofe em Montenegro. “Só querem festa, mas vamos comemorar o que neste ano?”.

Ennick não quer deixar o Industrial, bairro onde está sua vida, então pede solução para as enchentes

Industrial terá ação de desocupações

A Prefeitura de Montenegro confirma que há um projeto para desocupar ao menos parte do bairro Industrial, como nas ruas Cristiano Matte, Otaviano Moojen, Avenida Ivan Zimmer. “Na verdade, em quase todas as ruas da Industrial há casas que precisam ser retiradas”, diz a nota, por meio da comunicação.

Neste momento está prevista realocação em lotes na Av. Ivan Zimmer e nas ruas Ricardo Lerch e Hortêncio Rodrigues Machado. Quando estes cidadãos receberem novas moradias, as antigas serão entregues ao Poder Público para demolição e os terrenos não poderão mais ser habitados. A Secretaria de Habitação observa que inclusive muitas destas moradias estão em áreas invadidas, assim sujeitas a ações possessórias.

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