Em 2016, 2.339 mulheres foram mortas com tiros, cerca de 50% dos registros
Os números referentes à violência doméstica no Brasil levantam uma importante discussão acerca do decreto que flexibiliza a posse de armas pela população. Segundo dados do Datasus, do Ministério da Saúde, 2.339 mulheres foram mortas a tiros em 2016. O número equivale à metade dos casos naquele ano. Além disso, 560 foram assassinadas dentro de casa. Isso evidencia o risco de os registros aumentarem.
Motivado pela decisão do presidente Jari Bolsonaro, um grupo criou no Facebook a página “E se ele tivesse armado?”, com o objetivo de contar histórias que poderiam ter acabado em vidas perdidas. “Minha mãe passou por pelo menos dois relacionamentos abusivos. O primeiro batia nela com frequência. O segundo já tentou botar fogo na nossa casa com a família inteira dentro. Se ele estivesse armado, duvido que estaríamos vivos agora”, diz um dos depoimentos.
“Tive um padrasto que espancava a minha mãe sempre. Uma vez entrei no meio e ele me jogou na parede, bati forte a cabeça, então ela gritou que se ele me batesse, ela partiria para cima dele. Ele a arrastou para o quarto, fechou a porta e a espancou até quebrar os dentes”, conta outra internauta.
A presidente do Conselho Municipal de Defesa da Mulher (Comdim), Carliane Pinheiro, a Kaká, analisa como preocupação a facilitação do acesso a armas. “A violência doméstica contra a mulher é um ciclo planejado pelo agressor, que começa com pequenos atos e vai crescendo. Com a flexibilização da posse de armas, será uma tragédia ainda maior, com o aumento considerável do número de feminicídios. Estaremos todas em risco”, alerta.
Ela rechaça o argumento de quem defende que a medida vai aumentar a proteção do público feminino, partindo do princípio de que mulheres também poderão ter armas em casa, principalmente em se tratando de casos de violência sexual. “Segundo o Atlas da Violência 2018, 68% das vítimas de estupro são menores de idade, desse número, 50,9% são meninas menores de 13 anos e 27% possuem entre 14 e 17”, enfatiza.
Por outro lado, a responsável pela Delegacia (Deam), Cleusa Spinato, destaca ser necessário aguardar como a flexibilização funcionará. “Na minha opinião, não dá para fazer a correlação, pois os feminicídios ocorrem também sem utilização de arma de fogo, com uso de armas brancas (facas, facões etc), por asfixia (esganadura, enforcamento), por ação de calor (colocam fogo na mulher). E nos casos de uso de arma de fogo, estas são conseguidas no mercado paralelo, não legal, e continuarão a ser obtidas desta forma”, explica.
O presidente se manifestou sobre o decreto pelo Twitter nessa quinta-feira, 17. “Muitas falácias sendo usadas a respeito da posse de armas. A pior delas conclui que a iniciativa não resolve o problema da segurança pública. Ignorando o principal propósito, que é ‘iniciar’ o processo de assegurar o direito inviolável à legítima defesa”, escreveu.
Comerciante do ramo defende facilitação maior
Embora analise como positiva a publicação do decreto, o proprietário da Safari Caça e Pesca, responsável pela venda, conserto e restauração de armas, Henrique Nogueira, não acredita em um aquecimento do mercado no curto e médio prazo. Isso ocorrerá, segundo ele, se aprovado o projeto 3722/12, de autoria do deputado federal Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), que revoga o Estatuto do Desarmamento. Ele espera que isso aconteça com a renovação do Congresso. “O ideal é quando for aprovado o projeto 3722 ‘aí a coisa vai encrespar’, liberar calibre mais grosso, inclusive até fuzil para o homem do campo. Com certeza, vai mudar para melhor, flexibilizar bastante”, comenta. “Ele (Bolsonaro) se elegeu por causa disso, ninguém aguenta mais. Todos os outros candidatos defendiam o desarmamento. Isso é um direito do povo que foi roubado”, completa.
O decreto representa, segundo ele, o início do cumprimento das promessas do então candidato. “Com este decreto, ele (Bolsonaro) aumentou para quatro armas sem precisar comprovar a necessidade e tirou do delegado o poder de negar a posse. Antes os caras faziam a declaração, preenchiam todos os requisitos, faziam a prova de tiro, passavam nos exames, e o delegado simplesmente negava o registro, agora não pode mais fazer isso, salvo se tiver algum antecedente”.
Gasto mínimo é de R$ 3,7 mil
De acordo com levantamento da Agência Brasil, o cidadão que decidir adquirir um revólver ou pistola, após a entrada em vigor das novas regras para a posse de armas, desembolsará, no mínimo, cerca de R$ 3,7 mil para regularizar sua situação. O revólver mais barato encontrado, um .38 de cinco tiros, custa a partir de R$ 3,1 mil.
As mesmas lojas oferecem revólveres .22 a partir de R$ 4 mil. A pistola de mesmo calibre custa a partir de R$ 6 mil. Um revólver .36 pode ser adquirido por R$ 4 mil e a pistola .380 a partir de R$ 5 mil.
A aquisição de uma arma, no entanto, ainda envolve outros custos. É preciso, por exemplo, pagar R$ 88,00 para a Polícia Federal (PF) a fim de obter o registro.
O decreto
A partir do decreto assinado pelo presidente Bolsonaro, no dia 15, cidadãos brasileiros com mais de 25 anos poderão comprar até quatro armas de fogo para guardar em casa ou no trabalho. O texto regulamenta o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição no país, uma das principais promessas de campanha.
O que muda com o novo decreto é que não há necessidade de uma justificativa para a posse da arma. Antes esse item era avaliado e ficava a cargo de um delegado da Polícia Federal, que poderia aceitar, ou não, o argumento. O registro também passa a ter o dobro da validade, de cinco para 10 anos.