O amor em família venceu o silêncio, o tempo e a distância

Separados por 34 anos, filhos superam a dor para encontrar, na França, sua mãe e três irmãos, sendo que dois deles sequer puderam conhecer

Você já conheceu na vida real uma história típica de livro? Um romance tão lindo quanto trágico, aos traços do maranhense Aluísio Azevedo? Tem que ser uma trama envolvendo desilusão, injustiça, rancor e saudade; e que termina com a verdade prevalecendo e o amor vencendo, selada pelo reencontro em aeroporto. Um momento que deixa no imaginário coletivo a certeza que agora tudo será perfeito para seus personagens. Pois a história da família Azeredo é exatamente assim. E agora que se aproxima o emocionante desfecho do capítulo final, neste sábado, em Paris, os irmãos Teófilo José, 42 anos, e Assis Otorguedes da Silva Azeredo, 36, vão dividir seus 34 anos de ausência da mãe.

Após sofrerem calados, Teófilo e Assis saíram pelo Brasil à procura da mãe

“Pensa em uma história linda! Que até hoje eu não acredito”, descreveu Teófilo. O montenegrino conta que tudo começou nos idos de 1968, em pleno milagre econômico, quando o Brasil voltou sua expansão ao interior e ao Nordeste. Seu pai, Arnaldo Alci de Azeredo, saiu da Serra Velha para ser caixeiro-viajante, levando de São Paulo para o Maranhão novidades em utensílios para cozinha. E foi assim que conheceu a formosa Maria da Graça Alves da Silva.

Começaram trabalhando juntos, percorrendo o sertão daqueles estados. Mas logo o companheirismo virou amor. E ao contrário do personagem Quequé, do romance Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas, de José Condé, Arnaldo não tinha três famílias pelos caminhos. Com “Graçinha” o gaúcho quis constituir seu lar; e naquela terra árida nasceu o primeiro filho, Arlei Gladesão. Parecia que tudo seria perfeito, o casal até comprou um lote de terra.

Mal sabia Arnaldo que aquele pedaço de chão já havia sido irrigado com sangue em uma briga com posseiros. E depois de um grupo de homens armados invadir a casa, ele vendeu tudo e voltou ao Rio Grande do Sul. Teófilo nasceu logo após o desembarque da família em Montenegro, e um bebê sempre traz esperança de dias melhores. Mas somente hoje, em 2018, os irmãos souberam que não foi nada disso.

A mãe deles não foi bem aceita pela família de Arnaldo. “Os costumes de lá são bem diferentes dos nossos. Até a forma de cozinhar”, tenta explicar, e entender, Assis. E o drama começa a virar tragédia quando a avó materna, Luzia Alves da Silva, chega com a proposta de levá-los de volta ao Maranhão. Sua ideia era que filha e o genro assumissem o controle da pensão mantida pela família. Isso não agradou em nada o avô paterno Teófilo Azeredo.

O gaúcho considerou que Luzia queria separar a família, e depois da agressão dos posseiros não permitiria que seus netos voltassem ao Semiárido. Mas ninguém poderia prever o capítulo chocante que estava por assolar a casa dos Azeredo na Serra Velha. Durante uma acalorada discussão com Luzia, avô Teófilo sofreu um infarto fulminante e morreu, na frente de todos. Isso desencadeou uma sequência de acontecimentos, que encerraram o capítulo com Arnaldo internado com crise nervosa e Gracinha sendo convencida a acompanhar sua mãe, levando no ventre uma filha.

Essa é a última foto, tirada no dia da partida de Maria da Graça

Família foi partida ao meio
Assis sabe contar apenas que os nove irmãos do pai se reuniram e oito concordaram que seria melhor Gracinha ir embora. A cúpula dos Azeredo definiu ainda que os filhos Teófilo e Assis ficariam, enquanto Arlei seguiria para o Nordeste. Tudo às vésperas do Natal de 1984. A família entrou no Ano Novo partida.

O vínculo foi inteiramente quebrado. Os irmãos souberam que o pai até ocultou cartas de Maria da Graça. “Ficou como se a mãe tivesse nos abandonado”, desabafa Teófilo, que confessa ter se tornado um jovem revoltado.

O reencontro e a verdade mudaram seu perfil, permitindo inclusive analisar que aqueles eram outros tempos e que talvez, diante dos fatos, os tios fizeram o que pensavam ser o melhor. Assis apenas lamenta que nunca falaram a respeito destes acontecimentos. Inclusive o pai deles, após dois anos internado e sem lembranças daqueles dias, foi induzido ao erro.

Acreditando ter sido abandonado pela amada, acabou entrando no alcoolismo. Isolou-se, nunca mais teve uma namorada e trancou a casa em Serra Velha tal qual estava no dia fatídico. Fotos, roupas, louças e comida ficaram intactas no mesmo lugar, como se o tempo tivesse parado aguardando o retorno da felicidade. O cenário foi descrito pelos irmãos, que ainda moleques invadiram em busca de recordações.

Revolta dá lugar aos familiares no lado esquerdo do peito
Certamente a melhor recordação daquela época chama-se vovó Carolina Augusta de Azeredo. Ela criou os meninos, preenchendo o espaço de mãe. Quando faleceu em 1992, Téo e Assis moraram com tios e primos, pois, apesar dos pesares, a família não lhes desamparou. Foram anos sem ter Dia das Mães, e a redenção chegou para Teófilo no casamento.

Ver o carinho de sua esposa com os filhos reacendeu algo em seu peito. “Comecei a ouvir a palavra mãe de uma forma diferente. Antes ela não tinha sentido”. Isso levou a decisão de encontrar a sua, em uma jornada iniciada em 2002, quando Assis revelou a mesma vontade.
Foi feita ação na Justiça e procurados dados na Justiça Eleitoral. Mas o rastro da mãe e do irmão era tênue. Havia poucas pistas, dentre as quais o nome do avô materno, Jacó Marques Dourado, conhecido como “Jacó da Torre”. Para ajudar, mostraram ao pai imagens da cidade de São Mateus pelo Google Earth.

Mas ele não reconheceu nada, pois a vila se tornou uma cidade de 45 mil habitantes. Ainda assim, os irmãos resolveram sair em missão, levando Arnaldo ao encontro de seu passado. Diante de tanto ousadia, o destino resolveu conspirar. Na rodoviária da cidade os gaúchos foram abordados por um taxista que insistiu em levá-los a um hotel que indicava. Mesmo com reserva em outro, como se fosse premunição, aceitaram a oferta.

Pois não é que a dona do hotel conhecia a família do Jacó da Torre. E o mais impressionante, um dos filhos dele, tio dos gaúchos, era funcionário do taxista. Poucos minutos após colocarem os pés em São Mateus, já estavam na casa da segunda esposa do avô, Maria Do Carmo Dourado. Ali mesmo, souberam que Gracinha hoje vive na França, com o irmão Arlei e o irmão Ederson, fruto de outro relacionamento.

A irmã que nasceu no Maranhão, Leidy Daiany Alves Duvert, mora na Guiana Francesa (divisa com Amapá). “Imagina! Se dentro do Brasil não encontramos ela; imagina na Europa”, pensou, desanimado, Assis. Aos poucos foram conhecendo tios, tias, primas; e a presença da mãe foi invadindo o ambiente. Até chegar o momento dos contatos telefônicos.

Primeiro ouviram a voz dela em uma ligação convencional, o que já fez brotar lágrimas nos olhos. Depois, viram seu rosto por meio de chamada de vídeo. Nenhum deles consegue descrever o sentimento de rever aquela face que lhes remetia a um acalento.
Teófilo sentia como se a cada minuto fosse aliviando um pouco aquele fardo que carregou no coração por 35 anos. “Você ouve aquela pessoa, do outro lado do mundo, te chamando por filho”.

APÓS 35 anos, Gracinha e Arnaldo voltam a ser um só

O Amor venceu
Teófilo diz que o amor venceu. Mas a verdade é que o amor sempre esteve ali. Quando Gracinha e Arnaldo conversaram pelo vídeo, diante da família, ela declarou que nunca deixou de amá-lo. “Olha Arnaldo, nunca abandonei vocês. Arrancaram de mim… tu é o homem da minha vida”, repetiu Teófilo. Daquele momento em diante, o pai dos irmãos Azeredo reacendeu.

Aquele que tinha desistido da vida voltou a sorrir. “Levamos um velho e voltou um guri”, diz Assis. A felicidade o arrebatou de tal forma que em 19 de setembro o idoso com vitalidade de menino foi para França. Sozinho! Sem saber a direção ou a língua. O que importa é que voltou a viver ao lado de sua amada. E hoje os irmãos Teófilo e Assis iniciam sua viagem, desembarcando na França dia 27, para um reencontro que selará definitivamente a segunda chance à família Azeredo.

MÃE guarda na França mosaico que manteve viva a lembrança dos filhos montenegrinos. Fotos: Arquivo Pessoal

Saudade atravessou o Oceano
A história de Maria da Graça Alves da Silva renderia mais do que um capítulo. Ela sim pode dizer que sua vida daria um filme, ou um livro. Uma novela talvez! Nada foi fácil para essa maranhense, que passou por uma trajetória de altos e baixos, de perdas e danos. Fatos que foram se sucedendo e impedindo que retornasse para rever os filhos e seu verdadeiro amor.

Certamente aguça a curiosidade o fato de Gracinha hoje ser cidadã francesa; fragmento da história dos Azeredo que Teófilo descobriu com os parentes. Assim que sua mãe chegou ao Maranhão, nasceu a irmãzinha Leidy. Mas logo ela precisou ganhar a vida, e para tanto, por seis meses, deixou Arley na casa de familiares.

Quando buscou o menino, simplesmente partiu e por um bom tempo ninguém soube dela. Um irmão dela havia conseguido um emprego de doméstica na Guiana Francesa, e ela partiu. Mas sua vida continuou dura. Gracinha trabalhava de dia na casa dos patrões brasileiros e a noite fazia meio turno na fábrica deles.

Essa jornada desgastante acabou lhe levando ao consultório de um médico francês, que Teófilo não sabe o nome, que trabalhava neste país-estado vizinho ao Brasil. O profissional acolheu a jovem brasileira e ameaçou denunciar aquela situação análoga à escravidão.

Para a relação se tornar um romance foi questão de tempo. Maria da Graça casou com o médico, amor que gerou o franco-brasileiro Ederson. E o destino agiu novamente, trazendo a morte do novo companheiro alguns anos depois. Sozinha, precisou lidar com um acidente de trânsito grave com Ederson. A situação pediu um tratamento mais avançado e que seria possível somente na França. E como o casamento lhe deu a cidadania européia, Maria da Graça partiu para a França, onde mora há cerca de 15 anos. Apenas Leidy continua morando na Guiana. No entanto, a mãe dos montenegrinos atravessou o Oceano Pacífico carregando consigo a frustração de nunca mais ter procurado os meninos e o esposo.

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