Em Santos Reis. Sítio Müller é preservado pelo bisneto como relíquia da comunidade
Quem chega à comunidade de Santos Reis, assim que sai do asfalto para o calçamento, olhando à esquerda, verá um capítulo da história de 150 anos de Montenegro. Em 2023, a casa principal do Sítio Müller completa 100 anos de construção, totalmente reformada, servindo de refúgio do descendente Valdeni Airton Müller, de 76 anos.
O engenheiro civil mora em Porto Alegre na companhia da esposa Sandra Regina, 75 anos; mas com frequência pode ser encontrado na propriedade rural, fugindo da agitação da cidade grande através de uma viagem no tempo à “localidade do Cafundó”. O legado foi iniciado por seu bisavô Frederico Maurício Müller, que em ano incerto ergueu a primeira peça do casario, uma construção mais rústica do lado direito da casa.
A utilização do estilo Enxaimel, reconhecido em outras obras datadas pelo Rio Grande do Sul, permite Valdeni calcular mais de 100 anos da obra. No prédio Frederico teve comércio de secos e molhados, acolhia tropeiros e abriu um dos primeiros salões de baile da região. “Minha avó aprendeu a dançar ali, e conheceu meu avô”, recorda.
O casal Luiza Gehlen e Cristiano Albino Müller herdou a propriedade, iniciando em 1922 e concluindo em 23 a moradia principal. Ela contrasta com toda a paisagem no entorno. Seu frontispício detalhado com inspiração no Barroco tem portas altas em madeira maciça e envidraçadas na parte superior, estilo que se repete nas aberturas internas. A ornamentação é completada pelo brasão da família e as iniciais de seu idealizador C.A.M. (Cristiano Albino Müller).
Recordações da prospera vila
Na imponente casa nasceu e viveu nosso guia pela história. Os pais de Valdeni, Yedo Albino e Zely Müller trocaram a comunidade do interior de Montenegro (já rebatizada de Santos Reis) pela Capital na década de 70. Ele era um adolescente, e carrega boas lembranças do lugarejo. Era uma vida de interior, com bailes apenas em datas especiais, como o Kerb de Santos Reis em 6 de janeiro, e futebol no campinho.
Mas, segundo Valdeni, a localidade era próspera, com muito mais casas e moradores, cortada pela linha férrea e com uma economia mais diversificada. O trem passava bem em frente à casa dos Müller, ao largo da estrada principal (atrás das casas atuais). As ruínas da estação ainda estão em pé, assim como a chaminé da olaria que pertenceu ao seu pai; que usava o trem para vender telhas “francesas” de barro para outras regiões.
“Aqui era uma vila bem poderosa dos tempos do trem a vapor”, garante. No anexo da casa, dona Zely teve uma confecção de moda infantojuvenil que perdurou por anos. Mas o prédio rústico, que no passado foi salão de baile, também foi sede da ‘escola municipal de Cafundó. “Minha mãe foi professora ali”, afirma, recordando ainda da outra docente “dona Délia”.
Encontrado relíquias em meio ao passado
O engenheiro supervisionou pessoalmente os quatro anos de reforma, e até colocou as mãos no trabalho pesado. Ele salienta que não foi restauração, pois a casa não é tombada e não tinha recursos para um projeto destes. Também porque o tempo foi cruel com a estrutura, obrigando que muito fosse substituído por materiais contemporâneos.
Do teto do anexo foi retirado um tronco de pinheiro Pinos que servia de viga, fixado com presilhas de ferro com cerca de 30 centímetros. A retirada do forro revelou que nas tesouras foram usados ‘cravos’ de madeira ai invés de pregos. O assoalho estava perdido, e sob sua madeira foi encontrado um esquema de “cunha” para dar molejo à pista de dança. Inclusive, ali Valdeni encontrou uma herança involuntária.
Eram umas 10 garrafas de vinho de laranja e de bergamota que sua avó Luiza produzia em casa e servia nos bailes em meados da década de 30. Duas ele guardou lacradas como relíquia. O restante os pedreiros beberam. “E estão todos vivos”, brincou. Mas muito das construções originais está preservado, tanto no anexo como na casa principal, como o caso das portas e janelas em madeira Cedro.
Fez o que estava ao seu alcance
O herdeiro da história lamenta que muitas unidades do casario antigo de Cafundó foram perdidas, deterioradas pelo passar dos anos. Inclusive porque conhecimento acabou perdido. No caso do Sítio Müller, ele não teve com preservar o sistema de iluminação por meio de Carbureto.
Tratava-se de uma casinha no quintal onde eram colocadas pedras, que ao serem molhadas liberavam o gás. Pela residência havia encanamento com bicos que eram abrasados feito lampião. Em busca de preservar suas recordações mais afetivas, assim como os traços daquela próspera comunidade, ele fez o que estava ao seu alcance.
“Vou esperar cair tudo? Vou arrumar do jeito que posso”, comentou. Valdeni espera que o Sítio Müller siga na família, preservado pelos filhos Cristiano José e Carla Cristine, e perpetuado pelos respectivos netos, Lorenzo e Alice.
Causo Histórico
Valdeni Müller acredita que seu avô inaugurou a casa antes de julho de 1923. Ele se baseia em relato passado de geração em geração relacionado ao Combate de Vapor Velho – que completou 100 anos em 8 de julho -, no qual um oficial da Brigada Militar teria batido à porta de Cristiano Albino e solicitado sua carroça para levar até o trem soldados feridos e mortos. História semelhante é repetida por outros moradores.