Nômades do século 21, famílias de indígenas viajam pelo interior para vender artesanato. Até sábado estarão em Montenegro
A cultura indígena está nas raízes do Brasil. Estas terras, antes de serem dominadas por Portugal, pertenciam aos índios. Após a apropriação do país, os povos tupiniquins foram expropriados de seus domínios e, desde então, têm lutado por espaço. Muitas pessoas que transitam pela movimentada rua Ramiro Barcelos, durante o dia, sequer sabem ou levam em consideração esse fato histórico ao passarem pelos indígenas que comercializam seu artesanato por ali. Muito pelo contrário. Os povos que tanto contribuíram – e contribuem – para enriquecer nossa história, os “donos da terra”, parecem invisíveis. Você nunca se perguntou quem eles são e de onde vêm? Se a resposta for não, essa invisibilidade é social.
As duas famílias indígenas, uma de São Leopoldo e outra de Nonoai, que desde segunda-feira passada estão em Montenegro, pretendem ficar por mais esta semana. Elas vendem artesanato em alguns pontos da cidade e são pertencentes à tribo indígena Kaingang. Esse povo tem aldeias fixadas em diversos estados do país e em algumas cidades do Rio Grande do Sul, mas são nômades. Eles migram por diferentes cidades gaúchas, no período das férias escolares, em busca de melhores condições de vida. O trabalho manual, de filtros dos sonhos, ninhos de passarinho e balaios, é produzido na própria comunidade indígena e levado às cidades para onde viajam para comercialização. A língua nativa, cultivada nas aldeias, é a Kaingang, pertencente à família Jê.
As famílias
A ideia de que os índios moram em ocas e em condições do paleolítico – período da história há 2,5 milhões de anos atrás, em que artefatos começaram a ser produzidos em pedra lascada – é totalmente inadequada. Em uma casa de madeira, na aldeia localizada no bairro Feitoria, em um terreno cedido pela prefeitura de São Leopoldo, mora Marilei Lopes, 36 anos, com seu marido e os três filhos do casal. Juntamente com eles, mais de 100 famílias indígenas habitam o local.
O espaço, de acordo com Marilei, é pequeno para acomodar tantos habitantes Kaingang e dar possibilidade de plantio para todos. Apesar da limitação, ela afirma que cria galinhas e um porco. A organização da sua tribo é feita pelo Cacique Antônio. Distribuição de terras e busca por projetos sociais para os índios da localidade são atribuições dele. O chefe é eleito pela comunidade, mas, para isso, deve estar em constante busca por melhorias para o povo. “Nós conseguimos um posto de saúde. Vai inaugurar no Dia do Índio, 19 de abril. Mas não recebemos nenhum auxílio do governo, a não ser a cesta básica da Fundação Nacional do Índio (Funai). Para nós, que temos família, é pouco”, conta ela.
Santa Moreira, 52 anos, cunhada de Marilei, veio com as três filhas e três netos pela primeira vez a Montenegro. A viagem, feita sempre de ônibus, tem como objetivo a venda do artesanato. “Dá o suficiente para cobrir a passagem de volta”, diz. A comunidade em que ela e a família vivem fica no interior do município de Nonoai, Rio Grande do Sul.
Em ambas as aldeias, o dialeto dos Kaingang é conservado nas conversas. A alfabetização dos moradores também é feita primeiramente na língua nativa. As aulas são ministradas na própria comunidade. E então, apenas depois de dominarem o Kaingang, eles aprendem o Português. Na aldeia de Nonoai, os índios já têm escola própria. Em contrapartida, no povoado de São Leopoldo, onde reside a família de Marilei, não. Nem acesso à tecnologia. Os filhos dela, de 12 e 10 anos, são matriculados em escola local. O acesso deles à informática e aos computadores é restrito apenas ao ambiente escolar.
“Não sabem reconhecer que o índio é dono do Brasil”
Vivendo em condições precárias, dormindo em abrigos no chão e muitas vezes passando fome, os índios Kaingang se deslocam entre as cidades gaúchas em busca de condições financeiras melhores, a partir da venda de seus trabalhos manuais. A base econômica das famílias indígenas que estão provisoriamente em Montenegro é o artesanato. A instalação delas é em uma esquina próxima à rodoviária. Para o banho e a higiene, os banheiros da praça são utilizados. “A vida é difícil, mas temos que ir atrás. Quando eu era pequena, não ganhei estudo e nem condições dos meus pais. Não quero que meus filhos passem por isso. Nós viajamos para vender nosso artesanato e podermos comprar o que as crianças precisam. Daqui a uns dias, as aulas começam e eles precisam de roupas, calçados e materiais”, afirma Marilei.
Os três filhos de Marilei vieram junto à cidade, um de 10 anos, uma de 12 e uma de apenas um ano. O marido ficou em casa, produzindo. Mesmo com a perspectiva de conseguir vender os artefatos e arrecadar o dinheiro necessário para comprar cadernos e uniformes para os filhos, muitas vezes nem as necessidades básicas, como alimentação, são supridas. “Têm dias que vendo dó dois filtros, o suficiente para uma refeição”, fala.
Lidar com o preconceito nos lugares por onde passa, segundo Marilei, faz parte. “Os brancos não gostam dos índios, por assim dizer. Não sabem reconhecer que o índio é dono do Brasil, das terras. Ninguém reconhece. Alguns comerciantes nem nos deixam ficar em frente às lojas, mandam sair. Mas o nosso trabalho não incomoda ninguém, e sempre peço se posso expor no local. O índio é muito discriminado”, queixa-se.
Santa Moreira diz que a vida do indígena é mais difícil. “Têm muitas injustiças. As pessoas acham que não temos o direito de comercializar nas calçadas. Alguns são preconceituosos com a nossa cultura. Mas nós temos a necessidade de vender o artesanato para dar melhores condições aos nossos filhos. E porque, se não vendermos, não comemos”, destaca.
A visão sobre o índio
O sonho de uma vida melhor faz parte da rotina das famílias indígenas. Além do desejo de justiça, com ganho de terras para sobrevivência e condições igualitárias de estudo e emprego. Porém, a esperança esbarra na realidade. “Vida melhor a gente não vai ter porque é índio. Nós não temos espaço nessa sociedade”, afirma Marilei.
Adriane de Souza, 24 anos, moradora de Montenegro, destaca as condições degradantes dos índios que ficam na cidade. E, principalmente, a falta de sensibilidade de muitos em ceder um lugar para que se alojem. “Eles dormem nas ruas, e têm crianças junto. Perigo de pegar alguma doença”, diz. A filha dela, Helena de Souza de Andrade, de seis anos, sente-se penalizada com a situação, principalmente dos pequenos indiozinhos. “Eu vi uma criança indígena dormindo na rua, no chão, e fiquei com muita pena. Até falei para a minha mãe”, expressa.
Silvana Rosário de Almeida, 50 anos, dona de casa, afirma que não tem preconceito. “Respeito a cultura deles. E, apesar de nunca ter comprado os artesanatos, acho que é um belo trabalho. Muito digno”, conclui.
Os Kaingang
Esse povo integra a diversidade cultural do país. Eles formam um dos mais numerosos povos indígenas do Brasil. A língua nativa é a da família linguística Jê. Atualmente, os Kaingang vivem em mais de 30 áreas nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A sobrevivência depende principalmente da roça, através de espaços administrados pela Fundação Nacional do Índio, e venda de artesanato. De acordo com dados do site Kaingang.org, em 2013, uma população de mais de 17 mil índios Kaingang residia no estado do Rio Grande do Sul.
Auxílio
Quem quiser contribuir com alimentos, roupas ou fraldas durante a estada dos índios na cidade pode entregar pessoalmente para as famílias. Elas costumam vender seus artefatos na Praça Rui Barbosa ou próximo às lojas no Centro, especialmente na rua Ramiro Barcelos.
Os valores dos filtros vendidos pelos índios variam entre R$ 10,00 e R$ 30,00. Os balaios, cuja produção dá mais trabalho, são comercializados por R$ 30,00 e R$ 40,00.