As recentes enchentes que atingiram a região causaram estragos significativos e perdas incalculáveis para muitas famílias, inclusive psicológicos. Entre os afetados está Angélica Nascimento Kochenborger, 38, que compartilhou sua difícil experiência e os desafios enfrentados para recomeçar após a tragédia. Ela e o marido moram com os cinco filhos, de 4, 10, 11, 15 e 18 anos de idade. “Ainda é difícil quantificar as perdas,” conta Angélica. “A cada momento percebemos um item faltando. A casa está com muitas marcas e estragos, perdemos praticamente todos os móveis, alguns eletrodomésticos, objetos pessoais e afetivos, roupas, jogos e brinquedos, todos os livros, todo material do ateliê de artes que temos.” A devastação não foi apenas física, mas emocional, com muitas memórias associadas aos itens perdidos.
Mistura de sentimentos
Quando questionada sobre o sentimento de perda, Angélica destaca a dimensão afetiva da tragédia. “Nossos objetos são carregados de memórias, logo nossa perda é muito mais afetiva, bate direto nas nossas emoções, e ali essas perdas doem.” Após as cheias, uma mistura de sentimentos domina a vida de Angélica e sua família. “Difícil escolher o maior sentimento, porque são uma grande mistura. Nos sentimos roubados, mas não sabemos a quem culpar. Nos sentimos invadidos, expostos na nossa intimidade, confusos sobre as escolhas tomadas e pelas decisões que devem se seguir após o evento, percebemos nossa autonomia ameaçada. São muitos sentimentos.”
O medo, a ansiedade e a incerteza são constantes companheiros. “Todos os dias desde que saímos de casa bate esses sentimentos. Quando voltamos, pensamos que iria aliviar, mas surgem outros tipos de medos. Cada momento apresenta um medo diferente pra gente aprender a lidar.”
Em momentos difíceis, muitas vezes a mãe assume o papel de pilar da família. Angélica explica como tenta manter a estabilidade para seus filhos. Segundo ela, foi imprescindível tomar decisões bem difíceis para colocar a família em segurança e retornar para a mesma casa. “Mantivemos nosso padrão de conduta com todos eles, incluindo falar a verdade sobre toda a situação e como nos sentimos diante do evento, usando uma linguagem que cada um compreende. Também abrimos espaço para que expressem como se sentem, buscando ao máximo um pouco de rotina e organização, retomando o quanto antes as atividades e procurando manter o bom humor em alta, fazendo graça sempre que possível”, destaca.
Mas ela confessa que não é tarefa fácil. “Cá entre nós, no nosso cantinho, dói muito! A gente chora, se questiona toda hora se está fazendo certo, às vezes acredita que sim, outras duvida, mas seguimos fazendo nosso melhor por eles”.
Ajuda emocional é imprescindível
Diante da necessidade de recomeçar, muitas pessoas estão buscando apoio psicológico, o que não foi diferente com Angélica. “Procurar ajuda emocional é uma prioridade! Esse apoio veio inicialmente da nossa rede de proteção, que já existia e ficou mais forte ainda, mas por vezes se faz necessário suporte profissional e quando é preciso, procuramos.” Angélica enfatiza a importância de cuidar do bem-estar emocional para enfrentar as dificuldades.
O que motiva Angélica a seguir em frente é o amor e o apoio de sua família. “A minha família, meu marido, nossos filhos e nossos sonhos, que seguem intactos no nosso coração! Também nossa família extensa, nossa rede de apoio, nossos amigos têm feito de tudo para nos motivar e tem funcionado”, confirma.
Sobre os momentos mais difíceis desde o início das cheias, Angélica relata que dormir tem se tornado a pior parte. “Do primeiro dia até hoje! Então o dia difícil é sempre o hoje, o ontem conseguimos lidar e o amanhã acreditamos que será melhor! Aprendemos, apesar de tudo, a viver o nosso presente, respeitar nossas dores, ter empatia com as outras dores, e seguir com fé, afeto e muita esperança”, conclui.
Impactos psicológicos imediatos e a longo prazo
Em entrevista, a psicóloga montenegrina Jaqueline Porto compartilhou suas percepções sobre os efeitos psicológicos das enchentes e as estratégias para ajudar as vítimas a lidar com o trauma. Ela destaca que, após vivenciar uma enchente, muitas pessoas enfrentam um processo de luto que envolve tristeza, ansiedade, angústia, insegurança e incerteza em relação ao futuro. “Há uma falta de esperança e um medo da repetição do trauma,” explica.
Em longo prazo, os traumas causados por uma enchente podem levar ao desenvolvimento de transtornos mentais graves. “Algumas pessoas apresentam dificuldades de lidar e elaborar o estresse sofrido, podendo desenvolver sintomas emocionais e mentais mais graves”. Casos de rompimento com a realidade, episódios psicóticos e aumento no uso de álcool e outras drogas foram observados nos abrigos. “Essas pessoas precisarão de atendimento especializado da rede de atenção psicossocial,” alerta.
Nos abrigos, Jaqueline observou reações como confusão mental, medo excessivo, ansiedade, cansaço, esgotamento e somatização. “Esses sintomas são reações esperadas e tendem a diminuir com o tempo, mas algumas pessoas podem reviver o trauma como se estivesse acontecendo novamente,” explica.
A perda de bens materiais está intimamente ligada às memórias afetivas das pessoas. “Os objetos, móveis e casas estão conectados às experiências de vida, sonhos e objetivos das pessoas. É como se tudo tivesse sido levado embora, tanto a parte externa quanto a interna do sujeito.”
Estratégias de enfrentamento
Jaqueline sugere que as vítimas procurem apoio e conexão com familiares e amigos para evitar o isolamento. “É importante organizar a vida diária, retomar atividades possíveis e manter o bom humor,” aconselha. Conversar com grupos na comunidade ou buscar grupos de ajuda também é indicado.
O apoio psicológico imediato visa minimizar o impacto do trauma, interromper o aumento do sofrimento emocional e mitigar sinais e sintomas emocionais. “A intervenção rápida é crucial para evitar o agravamento dos sintomas,” reforça Jaqueline. O apoio da comunidade também é vital para proporcionar segurança e proteção às vítimas. “Reuniões e ações coletivas ajudam a escutar, acolher, fornecer informações seguras e encaminhar para benefícios e atendimentos sociais e de saúde,” afirma.
Cada pessoa é única, e os recursos de saúde mental devem ser adaptados às necessidades individuais. “Grupos de apoio são eficazes em casos de intenso estresse, pois ajudam as pessoas a perceberem que não estão sozinhas e a refletir sobre suas próprias histórias,” explica. “Esses grupos fortalecem emocionalmente e ajudam a resgatar a autoestima e a autonomia.” Para aqueles que passaram por uma experiência traumática, é recomendada a convivência em grupo para evitar o isolamento. “Aceitar a nova realidade, evitar a culpa e valorizar as próprias conquistas atuais são passos importantes para a recuperação,” conclui Jaqueline.