Lê, que te faz bem

A Biblioteca Pública lança um daqueles projetos que buscam despertar o interesse pela leitura. Leitura e Solidariedade, segundo a diretora da biblioteca, Maria Terezinha Kraemer, incentivará a troca de roupas ou alimentos por livros disponíveis de forma duplicada no acervo da biblioteca. As roupas serão doadas aos carentes.

Em países como o nosso, talvez só a carência intelectual seja maior que a miséria material de nossos nacionais. Ao tentar mitigar ambas pobrezas, a Biblioteca do Município dá peixe, mas também dá anzol.
De fato, se o hábito da leitura estivesse agarrado em nossas células como as espículas do vírus corona podem se agarrar, todas as outras misérias seriam menores.

Uma de minhas memórias infantis mais caras levam-me de volta à minúscula biblioteca do Grupo Escolar Dr. Jorge Guilherme Moojen, onde a cada semana se escolhia um livreto infantil para ser lido como lição de casa. O olor daquele ambiente e livros ainda estão entranhados em minhas células olfativas.
Outra lembrança remete-me a uma tarde quente em que meu irmão, adolescente, levou-me a conhecer um depósito de livros que estavam em prateleiras na saia de concreto de uma caixa d’água. Paulo fazia uns bicos cortando grama para os “doutores” que dirigiam a Estação Experimental Zootécnica. No pátio gramado de um deles, havia (ainda há, em abandono) uma torre de concreto no cimo da qual estava a caixa d’água.

Dentro da torre, que tinha uma porta de madeira, se depositavam as quinquilharias e ferramentas que não tinham lugar na casa. E muitos livros e revistas. Não tão bem organizados, mas bem dispostos. Nem o cheiro da umidade que emanava daquele ambiente foi capaz de quebrar a glória da visão de um infante recém iniciado nas primeiras letras. Era possível que alguém lesse tantos livros? E o que contavam aquelas brochuras que, já à época, eram tão antigas?Percorreu-me um sentimento de profunda culpa pela incapacidade de poder lê-los a todos, jamais.

O mesmo sentimento tomou-me quando visitei a livraria El Ateneo Grand Splendid, em Buenos Aires. Considerada em 2008 pelo jornal The Guardian como a segunda livraria mais bonita do mundo, ocupa um teatro que, depois, foi um cinema. Fileiras de estantes substituíram as poltronas. Os livros venceram, ali. Os livros também são arte.

Especulo que o prazer pela leitura possa ser inato, mas não nego que o interesse por ela possa ser estimulado. Inegavelmente inata é a solidariedade da gente brasileira. A campanha da Biblioteca Pública não trata de trocar roupa por livro. São doações recíprocas, diria. Roupas reconfortam corpinhos despossuídos. Livros fazem ferver os espíritos.

A leitura que enriquece é aquela que não seja apenas o exercício da decifração de signos ou códigos, mas interpretativa, crítica e variada (monotemáticos são os filhos dos fundamentalismos).
É o tipo de leitura que se encontra guardada em uma saia de caixa d’água no Passo da Cria ou em El Ateneo, na Buenos Aires de Jorge Luis Borges.

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