Por que os escritores não vão para o céu?

Um clarão fortíssimo ofuscava seus olhos. Num estado entre impaciente e irritado, tentava reconhecer o lugar. A neutralidade e o silêncio confundiam: asséptico demais para uma casa, tranquilo demais para um hospital. Chato demais para o inferno…
Riu daquele pensamento. E sentiu o corpo estremecer quando uma mão pesou sobre o seu ombro:
– O que fazes aqui? – perguntou o velho barbudo, vestindo túnica branca.
– Também gostaria de saber: o que eu faço aqui? E, antes, onde é aqui?
– Não reconheces os portões? Ainda não entendo como chegaste, vou ter que dar uma olhada no teu processo, mas é fato que estás às portas do Paraíso. Não crês? – questionou diante do olhar debochado e já acostumado à luz.
– Olha, o paraíso é algo subjetivo. Tanto que uns idealizam, veneram até mesmo a palavra, escrevendo-a com letra maiúscula (né?) e outros encaram como apenas mais um substantivo, corriqueiro, como é a vida da gente. E isso aqui pode muito bem ser uma miragem, um porre, um sonho… Ou pesadelo…
– Herege! Por isso escritores, como tu, não vão para o céu!
– Agora fala sério, morri mesmo?
– Teu fígado te traiu.
– Mas que tédio! Nunca acreditei em nada disso; como é que eu vim parar aqui?
– Realmente, não entendo como, com o teu currículo, isso aconteceu. Impropriedades, afronta à moral e bons costumes, sacrilégios! Tenho o registro de todas as tuas profanações e despautérios: o conto da freira, a crônica do jornal exaltando partes pudicas. Incitação, excitação! Perversão é teu nome… Num único texto daquele livro depravado confessaste todos os pecados capitais, e ainda doaste exemplares às escolas! Não, tu não tens a ficha limpa; terei que abrir uma sindicância porque, com certeza, alguém forjou esse teu visto de entrada.
O toque da harpa avisa; o whatsapp celestial. O velho visualiza a mensagem, revira os olhos e blasfema:
– Não creio!
– PEDRO!!! – A voz rouca e forte ecoou entre as nuvens.
– Por incrível que pareça, além de brasileiro, Ele é teu fã. Gostaria de deixar claro que, se dependesse de mim, te daria uma passagem de ida para o, bem, tu sabes para onde. Mas ele resolveu te dar mais uma chance: tu és muito popular entre os que não creem e sabes lidar com outras e novas plataformas além das antigas escrituras; vais voltar à vida, mas teu compromisso será reescrever a história do Seu povo.
– Fechado. Qualquer coisa para ficar longe de ti… Do senhor… Do Senhor. E perto de um copo de uísque!
De volta, a bebida na mão e a caneta na outra; fiel a sua missão de reformular a bíblia, inicia com uma frase pronta:
“Esta é uma obra de ficção.”

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