O fundo do poço

“Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço.”

Esse é um trecho do conto Nos Poços, publicado em 1975 por Caio Fernando Abreu, do qual eu lembro sempre que me deparo com situações angustiantes. Aqueles momentos tão desesperadores, quando nos sentirmos de mãos atadas. Quando o limite da agonia é calar, é conviver com a frustração e acostumar com a adversidade. O poço é a metáfora perfeita para a desilusão: aquele lugar profundo, solitário e enclausurado, sombrio como o Brasil pós AI-5, com a intensificação da censura, as prisões, as torturas e as mortes. Ditadura é o fundo do poço.

Mas eu não vim até aqui para discutir política; nem as fortunas forjadas nesses e em outros tempos. Não vim falar da corrupção enrustida de antigamente, ou dessa, deslavada, de hoje em dia. Isso todo mundo já sabe. Há quem prefira ignorar, quem tenha interesse em ignorar. Interesse, inclusive, em negar. Mas todo mundo sabe. Não quero defender ninguém. Na verdade, quero apenas falar da minha liberdade, tão preciosa e tão precária.
Encontramo-nos muito próximos de retornar às práticas do regime militar. Não apenas pela descrença e o desespero do povo brasileiro na política, mas, também, pelos discursos inflamados dos aproveitadores de plantão. O fanatismo furioso que desvaloriza a vida.

A repressão chegou até mim como uma amostra grátis, tolhendo a literatura, me calando e adoecendo. Claro, não há a mínima comparação do meu pequeno poço com o sofrimento nos porões de 64: martírio das famílias, castigos de sangue. Essas são feridas que não vão cicatrizar jamais. Atos repugnantes justificados como tentativa de restaurar a ordem.

“Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.”

Nos poços é apenas um dos textos em que Caio Fernando repudiou as condutas autoritárias. O final inconcluso do conto, para mim, é indicativo de que escrever é resistir.

Não podemos deixar que nos roubem, além do dinheiro, os direitos. Nossos valores, esperanças e ideais. Nossa liberdade, cantada em prosa e verso. Essa liberdade que não é apenas o direito de ir e vir, mas de ir e vir sem medo. Inadmissível a liberdade de outrora, do verso de Drummond: “…defendida com discursos e atacada com metralhadoras.”

Sei que muitos devem estar me julgando, dizendo que eu não sei nada do assunto. Que eu falo por livros e histórias que ouvi sobre os tempos do regime militar. Mas não cogito um minuto a mais de privação da minha liberdade, nem da dos outros, por esse autoritarismo que cega. Amarra, engessa. Por essa gente que clama para ver o país “entrar nos trilhos” oprimindo. Não há como não lembrar o poeta Manoel de Barros: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras – liberdade caça jeito.”

E é por isso que eu nem discuto: se você acha que eu não conheci a ditadura, não quero conhecer. Depois do aperitivo que vivemos, afirmo, com certeza: morro de sede, mas dessa água de fundo de poço não beberei.

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