Não asfaltem a minha rua!

Talvez eu seja vaiado pela vizinhança, então nem vou dizer onde moro. Só vou revelar que minha rua não é asfaltada. Ela tem esse calçamento de pedras irregulares, cujo único defeito é que poderiam ser um pouco, pelo menos um pouco, menos irregulares. Levaram muito a sério esse conceito. Minha rua é tão irregular que, mesmo de jipe, rodar por ela é meio que uma aventura a la Indiana Jones. Mas, mesmo com calçamentos feitos de um jeito meio apressado ou desinteressado, essas pedras irregulares já foram o luxo nos bairros de outrora e sonho das periferias, hoje todos tão sedentos pela doença do asfalto. Sim, eu considero o asfalto uma doença. E eu já digo o porquê.
Tenho uma insônia teimosa. Volta e meia me pego em meio à madrugada catando uma leitura, um filme, uma série, qualquer coisa que me distraia a mente e quem sabe traga o sono de volta. Raramente funciona. Volta e meia acho um amigo on-line no whatsapp, mas aí a pessoa está trabalhando e não pode falar muito. Nem eu quero falar muito também, prefiro acompanhar os status dos conhecidos. Eis outra mágica da comunicação tecnológica e contemporânea. Os status e histories da vida dizem muito sobre uma pessoa, tudo aquilo que ela quer externar, mas nem sempre está a fim de dizer.
Mas o que tem a insônia a ver com o calçamento da minha rua? Ah. Noite dessas, era algo em torno de duas e meia, ou três horas, fui até minha sacada apreciar a paisagem. A chuva tinha feito uma pausa, porém ainda estava abafado, sinal de que ela voltaria. Olhei minha rua. E mais adiante, no trecho em frente à casa de uns amigos, as pedras tinham um brilho úmido que, combinado com a luz difusa da madrugada, vinda de lâmpadas tímidas sobre postes camuflados no breu, era algo simplesmente lindo de se ver. Um brilho único, prateado, que só pedras irregulares e úmidas numa madrugada insone conseguem ter. Fiquei ali, apreciando a beleza acidental que o cenário oferecia. Sou de apreciar belezas, gosto e preciso disso. Deixar que a paisagem provoque em mim as sensações de amor e reflexão que me sustentam. E só consigo fazer isso em silêncio. Precisa ser tão solitário quanto ler, ouvir música ou escrever. Neste ponto, a insônia é minha amiga. E é bom morar num bairro calmo.
Talvez um dia asfaltem a minha rua. É a tendência, é o que quase todos querem nas ruas da cidade. Mas aí, lá se vai o brilho, e nem é ao brilho prateado da madrugada úmida que me refiro. Se asfaltarem minha rua, aumentará o trânsito. Aumentará a velocidade desse trânsito. Que se já hoje alguns motoristas esquecem que ali é zona residencial e escolar, que há crianças com suas mochilas saindo da escola, crianças nas casas que saem correndo atrás da bola ou do seu cachorrinho – porque são crianças e brincam, ora bolas! -, imagine numa rua asfaltada. O asfalto é inimigo do respeito ao próximo e da paciência. O asfalto dá medo, traz exclusão, encarcera. Ele é veloz e desumano. O asfalto entope bueiros, retém a água, promove alagamentos. E os buracos desses asfaltos feitos para lucrar, em licitações duvidosas, são bem piores que os buracos de pedras irregulares ou estradas de chão. Talvez um dia asfaltem mesmo a minha rua. Eu perderei o cenário da madrugada. Meu filho perderá o direito de jogar futebol na calçada. Alguns vizinhos perderão móveis nas enxurradas. Mas alguém sempre ganha com o asfalto. Que sejam os skatistas. Eu serei voto vencido, mas tudo bem, é a vida coletiva. Só tomara que demore bastante.

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