Há qualquer mistério no mar

É bom ver a praia vazia. A noite já se anuncia, o dia está definitivamente rendido. Não houve sol o dia todo e o vento parece não gostar da minha presença à beira-mar, quer me mandar pra casa. Sinto o seu toque gelado no rosto, nas frestas da roupa, nos ossos. Três pirus-pirus seguem sua rotina, nadam, voam, correm e beliscam a areia recém banhada pelas ondas. Estão ali para se alimentar. Não dão bola para o único ser humano que aprece apreciar o frio invernal do dia que se encerra. No meu caso, o alimento que busco é para a alma.
Passei o dia estudando. Tirei três dias para me esconder no litoral, fugir da rotina pesada de filhos e família e trabalho, quero fazer uma prova com conteúdos complexos de gestão, direito, etc. Ela poderá me levar a um mestrado profissional, se aprovado, e, talvez, uma futura promoção. Em casa, ou no trabalho, eu não conseguiria estudar. Não sei estar em casa sem dar atenção aos meus filhos. E também não sei usar o horário de trabalho para fins pessoais.
Lembrei de uma escritora, com a qual nunca mais tive contato, que dizia escrever contos e poemas em horário de expediente. “Porque pra esse governo aí, eu não trabalho”. Na época, o partido dela tinha perdido as eleições e virara oposição. Tentei argumentar que funcionários públicos não trabalham para o governo, trabalham é para o povo. Usar os meios, ou o horário de serviço, para fins particulares não é ético. Ela riu da minha cara. Não é mais minha amiga. Não perdi nada.
Observo as ondas. Busco algo, nelas. Com o passar das horas e o chegar da noite, elas vão ficando mais fortes. Talvez a escuridão, quem sabe o anonimato, as favoreça. Há quase cinco anos não escrevo um novo livro. E meu amigo Bruno, editor em São Paulo, volta e meia me lembra que está só aguardando meu novo romance. “Aquele bestseller policial que entrará pra história”. Brinco que ele errou de autor. Escrever um bestseller era um sonho juvenil. Que, desconfio, não realizarei. Mas não encuco mais com isto.
Não encuco mais com muitas coisas. Aos poucos vou normalizando minha saúde física e mental e isso já me basta. Ver meus filhos em harmonia entre si, me basta. Apenas encuco com esse circuito de ódio e intolerância que nos cerca. Os casos do estudante de Charqueadas, do sequestrador do ônibus no Rio, a reação do governador carioca vibrando como quem fez um gol. Parece-me que voltamos aos tempos dos gladiadores romanos. Sangue e sofrimento viram gritos delirantes da torcida. Onde estamos? Que retrocesso é este? Quem disse que preciso ser fanático agressivo de lá ou de cá?
Os pirus-pirus são uns dez, agora. O vento também anda intolerante e o frio até que dá um certo prazer, mas não quero facilitar. Nem para o pulmão fraquejar de novo, nem para a arma de algum assaltante. Pensei em escrever. E vou. Mas será só para o jornal, outra vez.

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