Em meados da década de 90, veio trabalhar conosco na redação do Jornal Ibiá, um jornalista de Porto Alegre. Como era de fora, cabia aos nativos orientá-lo sobre a cidade, indicar fontes, contatos telefônicos e endereços. Certo dia, depois de retornar de uma pauta, ele me perguntou por que a principal rua de Montenegro, que já na época concentrava a maior fatia do comércio e dos prestadores de serviços, chamava-se Ramiro Barcelos. Não tinha a resposta. Nunca havia pensado a respeito e sequer sabia quem era o homenageado.
Aquilo me incomodou e, num tempo em que não havia Google para esclarecer este tipo de dúvida, passei na Biblioteca Pública em busca de respostas. Fui atendido pela solícita diretora Lyllian Schoelkopf que, num misto de espanto e comiseração, indicou-me um livro de História do Rio Grande do Sul. Na leitura, descobri que Ramiro Barcelos fora um importante político gaúcho, nascido em Cachoeira do Sul em meados do século XIX. Médico, deputado provincial e depois senador, é autor do poema “Antônio Chimango”, uma áspera ironia contra o então presidente do estado, Borges de Medeiros, curiosamente seu primo, mas também oponente nos palanques.
Esclarecida a dúvida, achei justa a homenagem, embora, há 25 anos, a maioria das pessoas já sequer imaginava a razão. Hoje, numa incursão mais profunda pela biografia de Ramiro Barcelos, possivelmente encontraríamos bons motivos para reduzir-lhe os feitos. Os tempos são outros, os valores também. Contudo, isso não nos autoriza a passar uma borracha no passado. A figura que dá nome à nossa principal rua não precisa ser reverenciada, como certamente foi no começo do século XX, mas deve ser preservada e conhecida. Por quê? Por que faz parte da identidade gaúcha.
Recordei desse fato há poucos dias, quando vi, pela TV, manifestantes vandalizando as estátuas de Edward Colston, em Bristol (Inglaterra), e de Cristóvão Colombo, em Richmond (EUA), porque ambos tiveram relação com o tráfico e a exploração de negros e índios. Nos anos 90, logo após a queda da União Soviética, nos países do Leste Europeu que viveram sob ditaduras comunistas, as efígies de Vladimir Lênin e Joseph Stálin tiveram destino semelhante. Mais recentemente, aconteceu o mesmo com os monumentos a Saddam Hussein no Iraque.
Assim como o ser humano tenta esquecer as experiências ruins que viveu, é natural que deseje se livrar dos símbolos de opressão. Contudo, é preciso tomar cuidado para que esta faxina não apague a História. Pode doer, mas o correto é preservar as estátuas – talvez não todas, mas algumas – e ressignificá-las. Elas devem servir de alerta para que os crimes cometidos pelos “homenageados” não se repitam. É por isso que o campo de concentração de Auschwitz, onde os nazistas transformaram em cinzas milhares de judeus, e o Coliseu, palco da matança de Cristãos há 2 mil anos, seguem de pé. Também não teria sentido derrubar o Arco do Triunfo, em Paris, porque ele foi construído por Napoleão, apontado por muitos historiadores como um verdadeiro carrasco.
Voltando às estátuas, Colombo de fato contribuiu para a escravização dos índios, mas isso não apaga os seus feitos como navegador e descobridor da América. Quando olharmos para as estátuas dele espalhadas pelo mundo todo, precisamos enxergar todas as suas faces. Isso só é possível se conhecermos a História. E acabar com seus símbolos não facilita a tarefa.