“Manhã clara de Verão/ céu sem nuvens azulado/ velha mangueira florida/ e um formigueiro ao seu lado.” Narrada por voz suave e arrastada, assim iniciava uma das fábulas que marcariam minha infância. Não saberia precisar quantas vezes ouvi o velho “vinil”.
O disco seguia girando, em meio ao típico ruído produzido pelo arrastar da agulha. A música iniciava com voz forte e empasso de marcha: “Um, dois, três, sacos de farinha/ quatro, cinco, seis, sacos de feijão/ trabalhando dona formiguinha/ vai enchendo, aos poucos, seu porão… Enquanto isso, lá no alto/ de uma mangueira florida/ uma cigarra canta a alegria da vida ”.
Décadas de memórias vivas se passaram. Não poderia ser diferente. Atribuídas a Esopo (620 a.C.), esta é uma das tantas belas heranças da Grécia antiga. Caso você não a tenha reconhecido, trata-se da fábula “A Cigarra e a Formiga”.
Ao passo que a narrativa seguia, o Inverno e a neve chegavam. A Cigarra recorre à rainha-formiga, para ter um pouco de comida e esta pergunta: “ – O que fez o Verão inteiro? ”. A cigarra responde: “ – Cantei para animar seu trabalho…”. De forma ríspida, a rainha profere: “ – Então, agora, dance. ”
As fábulas carregam um caráter educativo e moral. Esta, em especial, aborda normas de conduta. A fábula original, sem floreios, faz uma dura advertência àqueles que se omitem do trabalho: trabalhe ou morra de fome.
No entanto, a versão que ouvia é mais moderna e carregada de simbolismos. Nesta, um fato chamava a atenção. Tentando provar uma à outra que a forma como cada uma vivia seria a melhor, cigarra e a formiga passavam um longo período discutindo a “própria verdade”. Enquanto isso, nada se resolvia.
Psiquicamente, cigarra eformiga encarnam um dilema humano: a polarização. Um todo que, quando dissociado, fecha-se para o que pode produzir de melhor.
Todo incômodo guarda um conteúdo negado. Tanto que o enredo se define apenas quando a consciência da rainha-formiga fala mais alto e ela propõe: “– E assim juntemos, amiga/ a cantiga da cigarra/ ao trabalho da formiga.”
As personagens se mostram mais coerentes do que tantos outros “insetos” por aí. O reconhecimento de si no outro levaao humilde reconhecimento de própria falta. A arrogância e a polarização da verdade pessoal mantêm o isolamento. Enquanto isto, paga-se o preço de nada acontecer. Não há “verdade” isolada. Ela só faz sentido quando a serviço do bem comum.
Como dizem os Vedas: “A Verdade é uma só, mesmo que tenha muitos nomes.”
Paz e bem